Vontade de apagar a História é característica de governos autoritários como este
Um amigo da família, publicitário da Kibon, era responsável por batizar os novos produtos da marca. Estava com especial dificuldade para o nome de um sorvete de frutas. Inquieto, taciturno, trancado em seu escritório, não queria ouvir um pio das crianças brincando. E nós, amedrontadas, obedecíamos. Até que um dia ele sai eufórico pela casa gritando: “Jajá de coco”, enquanto socava o ar como Pelé.
Essa lembrança me veio à cabeça logo que soube do nome do novo plano do governo, a ser lançado em um Big Bang Day. Imagino um grupo de técnicos reunidos em uma mesa na Esplanada a socar o ar, eufóricos com o grande achado.
O suposto plano é apenas um apanhado de iniciativas dispersas. Mistura assuntos emergenciais com questões estruturais. Não traz respostas de curto prazo para a saída da pandemia, nem projeto de longo prazo de crescimento. Nada de abertura comercial, redução drástica nos gastos tributários, revisão de regime especial do IR, abertura comercial, privatização ampla e reforma administrativa. E um choque educacional, nem pensar. Ainda tem a CPMF, é claro.
Mantém a aparência de um discurso de responsabilidade fiscal, ao mesmo tempo que acena com obras públicas e ampliação de programas como 0 Minha Casa, Minha Vida. Tudo com foco no Nordeste, mesmo sendo o déficit habitacional maior no Sudeste. Populismo é tudo igual. A exploração da tragédia social segue como a principal política econômica do País.
O teto se mantém como ficção. O pacote não estabelece claramente os mecanismos e gatilhos que o preservariam. Mesmo porque o presidente não está preocupado com o assunto. O teto vai morrendo por falência múltipla dos órgãos, em decorrência da doença crônica do clientelismo brasileiro.
Os saudosos do nacional desenvolvimentismo têm a romântica ideia de que gasto não importa, desde que se faça direito. Gastar bem no Brasil, isso sim, seria um novo Big Bang. O vice Mourão acaba de anunciar a compra de um satélite desnecessário. A desculpa é sempre a tal da soberania nacional, que também justifica a permanência de tantas estatais nas mãos do governo. A Valec deve atender a algum critério de soberania que me escapa.
Na reciclagem de ideias, até a capitalização da Eletrobrás, que perambula desde 2017, entrou na lista. Deverá ser modificada no Senado. E aposto que sai piorada. O Tesouro vai acabar pagando por ela em vez de receber. Nem sua privatização, nem a venda antecipada dos contratos da PPSA, vão transformar o modus operandi do Estado brasileiro.
Muda o governo e só muda o cliente. Empresas que interessam aos militares se mantêm intocadas e ainda recebem reforços financeiros. O expediente de capitalização de estatais é outra peneira oficial no teto. No apagar de 2019, foram R$ 10 bilhões em uma tacada. Agora, governo pede mais R$ 500 milhões ao Congresso. Mais uma vez, entre as contempladas, está a Emgepron. Corvetas e fragatas é a pauta prioritária.
O esforço de marketing não resolve. O plano está mais para a teoria do estado estacionário. De todo jeito, o dia do Big Bang foi adiado para a semana que vem ou por 13,7 bilhões de anos. Tendo o ministro da Economia como átomo primordial, talvez melhor não arriscar mesmo. Vai quê.
Bolsonaro parece que não gostou das propostas. Claro, só pensa na reeleição. O que importa é a continuidade do auxílio, o resto é perfumaria. Quer um programa assistencialista de fácil entendimento para oferecer. A diferença de R$ 30 no valor do auxílio, combinado com o fim do abono salarial, inviabilizou o anúncio do plano. Não foi o ambiente pesado no Senado, por conta de mais uma declaração desastrosa de Guedes, nem mesmo o crime de ameaça física do presidente da República a um repórter que fez a pergunta que não vai calar: “Por que sua esposa recebeu R$ 89 mil de Queiroz?”.
Quanto mais confusão na economia, melhor. Muda o foco. STF, trapalhadas dos filhos e a ameaça Queiroz o calaram, mas ele não mudou. Segue firme na agenda: militares, assistencialismo e obscurantismo. Contando com a fidelidade de todos seus ministros, inclusive Guedes, que não está sendo fritado. Apoia o projeto ideológico clientelista e só sai quando não for mais útil para o chefe. Vai taxando livros, coisa de elite, enquanto isenta a linha branca e mantém a Zona Franca.
Bolsonaro reclama da imprensa. Mas não foi cobrado pela passividade da Damares diante dos ataques de fanáticos religiosos a uma criança; pelo envio do quadro de Djanira, “Orixás”, para os porões do Palácio do Planalto nem mesmo pelo uso do avião da FAB por garimpeiros ilegais. A invasão da Cinemateca passou batida. Lá, além dos filmes nacionais, estão as imagens que carregam a memória do nosso País. Correm o risco de se perderem.
A vontade de apagar a História, o desprezo pela cultura, pela liberdade de expressão e pelos direitos humanos andam juntos em governos autoritários como este. Um cidadão que pensa, imagina, cria e desenvolve senso crítico, incomoda muito. Deve dar mesmo vontade de encher a boca de cada um de porrada.
*Economista e advogada