El País: STF reage a Janot usando controverso inquérito que investiga ‘fake news’

Um dia depois de o ex-procurador-geral da República revelar que pensou em matar o ministro Gilmar Mendes, Polícia Federal faz apreensão em sua casa. Mesmo processo já serviu para censurar revista e solicitar mensagens hackeadas.
Foto: Lula Marques/Agência PT
Foto: Lula Marques/Agência PT

Um dia depois de o ex-procurador-geral da República revelar que pensou em matar o ministro Gilmar Mendes, Polícia Federal faz apreensão em sua casa. Mesmo processo já serviu para censurar revista e solicitar mensagens hackeadas

O que surgiu como uma aparente tentativa de promoção de um livro de memórias virou caso de polícia. Um dia depois de o ex-procurador-geral da República Rodrigo Janot revelar em entrevistas que pensou em matar o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, a Polícia Federal foi bater em sua casa e em seu escritório, ambos em Brasília. De acordo com o site jurídico Jota, foram apreendidos uma pistola, três pentes de munição, um celular e um tablet. O procedimento foi autorizado pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, no escopo do controverso inquérito 4.781, aberto de ofício (por conta própria, sem a iniciativa do Ministério Público) — e que segue sob sigilo — a partir de iniciativa do presidente do Tribunal, Antonio Dias Toffoli, para investigar ataques e fake news contra a Corte Suprema.

Após a publicação das entrevistas em que Janot relatou que entrou armado no STF para atirar em Gilmar e, depois, se matar, o ministro do STF pediu a retirada do porte de arma de Janot. Moraes determinou não apenas a suspensão do porte de arma, mas uma ação de busca e apreensão, porque as declarações de Janot “sinalizam a necessidade da medida para verificar a eventual existência de planejamento de novos atos atentatórios ao ministro Gilmar Mendes e as próprias dependências do Supremo Tribunal Federal”, segundo trecho da decisão. O ministro enxergou “incitação ao crime” e também proibiu o ex-procurador-geral de “aproximar-se a menos de 200 metros de qualquer um dos ministros desta corte, bem como impedir seu acesso ao prédio sede e anexos deste tribunal”.

Em abril, a então procuradora-geral da República Raquel Dodge pediu o fechamento do inquérito utilizado agora para reagir às declarações de Janot. Ao negar o pedido, Alexandre de Moraes explicou que “o objeto deste inquérito é claro e específico, consistente na investigação de notícias fraudulentas (fake news), falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações revestidas de animus caluniandidiffamandi ou injuriandi, que atinjam a honorabilidade institucional do Supremo Tribunal Federal e de seus membros, bem como a segurança destes e de seus familiares, quando houver relação com a dignidade dos ministros”.

O escopo é amplo o bastante para embasar decisões bem distintas. Desde que foi aberto, em março deste ano, o inquérito 4.781 já foi usado para retirar uma reportagem da revista eletrônica Crusoé do ar e solicitar que as mensagens hackeadas de procuradores da Lava Jato fossem encaminhadas para o Supremo. A utilização do inquérito das fake news para agir contra Janot, agora, é uma forma de acelerar um processo de investigação que teria de passar, em situação normal, pelo Ministério Público. Como o ex-procurador se aposentou em abril deste ano, já não é mais membro do MPF e não tem, por isso, foro privilegiado para ser julgado pelo STF. O rito habitual para investigar qualquer pessoa comum seria acionar a procuradoria estadual e os promotores poderiam determinar, se fosse o caso, um processo de busca e apreensão, explica a advogada constitucionalista Vera Chemim.

A especialista afirma, entretanto, que embora o inquérito liderado pelo ministro Alexandre de Moraes tenha “ressalvas do ponto de vista constitucional”, já que atribui ao STF funções que não cabem a ele, como a de investigação e a de acusação, o argumento utilizado por ele justificaria a ação contra Janot, porque visa saber se há o planejamento de um crime contra Gilmar. Ela afirma que a busca e apreensão também se justificam pelo artigo 240 do Código do Processo Penal, que fundamenta a ação no objetivo de “apreender armas e munições destinados a fim delituoso”. Chemim ressalta, porém, que salvo haja algo contundente em relação a um possível planejamento, dificilmente o processo contra Janot prosperará. “Ele tem direito a ter porte de arma e não se pode incriminar o que se passa na cabeça de uma pessoa. Não tem muito onde chegar.”

Janot volta a criticar STF

Janot, que permaneceu calado durante seu depoimento à Polícia, falou sobre a questão ao site Jota. “É um inquérito anômalo, para investigar fake news. A imputação é ofender a integridade corporal ou a saúde das autoridades mencionadas. O fato narrado no livro e nas entrevistas [seu desejo de matar Gilmar Mendes] não constitui crime, muito menos notícia fraudulenta”, declarou, ao analisar o inquérito. “Não vejo vinculação entre o objetivo do inquérito e as medidas agora adotadas e não detenho mais prerrogativa de foro para ser investigado pelo STF. Mas confio na Justiça e que a verdade será restabelecida”, finalizou o ex-procurador-geral.

A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) condenou tanto as declarações de Janot sobre Gilmar Mendes quanto as ações de busca e apreensão na residência e no escritório do ex-procurador. “O STF não possui jurisdição sobre eventuais atos de Janot, não há contemporaneidade na suposta conduta e, o pior, a ordem foi emitida no âmbito de uma investigação inconstitucional”, diz a associação em nota. Para a ANPR, “o Inquérito nº 4.781 afronta o Estado democrático de direito ao usurpar atribuição do Ministério Público, ao determinar apuração sem fato determinado, e ao violar a competência constitucional da Corte, o sistema acusatório e também o princípio do juiz natural”.

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