Grupo de especialistas expulso da Nicarágua documentou dezenas de assassinatos e considera que o regime sandinista tem de ser julgado
Apenas algumas horas antes de a equipe da Organização dos Estados Americanos (OEA) apresentar seu relatório sobre a situação na Nicarágua, o Governo de Daniel Ortega lhe deu 24 horas para deixar o país. Depois de seis meses de trabalho, as conclusões não agradaram ao regime, acusado de coordenar diretamente a repressão, e as autoridades impediram sua divulgação em solo nacional. De acordo com o relatório, a polícia sistematicamente abriu fogo contra a população e lançou uma ofensiva que incluiu tortura e agressão sexual nas prisões e que, segundo o informe, deveria ser julgada como “crimes de lesa-humanidade”.
“O exercício da violência pelo Estado não consistiu de atos isolados, mas foi levado a cabo de forma organizada e em diferentes momentos e lugares do país (…) não se tratou de eventos explicados pela decisão individual de um ou mais agentes policiais (…), mas de uma política de repressão impulsionada e endossada pela mais alta autoridade do Estado”, diz o relatório.
O Grupo Interdisciplinar de Peritos Independentes (GIEI) conseguiu determinar que a maioria das mortes e ferimentos graves é de responsabilidade da Polícia Nacional, cujas tropas agiram diretamente e de forma coordenada com os grupos armados paramilitares.
A publicação do relatório, cuja apresentação estava marcada para esta quinta-feira em Manágua, foi finalmente realizada sexta-feira em Washington e é o resultado de seis meses de trabalho na Nicarágua, em contato direto com as vítimas, testemunhas oculares, famílias afetadas e organizações de direitos humanos, bem como a revisão de milhares de documentos e consultas constantes com especialistas internacionais de diferentes disciplinas.
Peritos, entre os quais Claudia Paz y Paz e Amerigo Incalcaterra, disseram que a irrupção dos protestos em abril não foi o resultado de acontecimentos isolados, mas de anos de práticas que foram reduzindo liberdades, cooptando as instituições públicas e concentrando poder em Daniel Ortega e Rosario Murillo, sua mulher e vice-presidenta. “Isso foi causando, e acumulando, descontentamento social, que se manifestou ao longo dos anos em diferentes expressões sociais que foram violentamente reprimidas pela Polícia Nacional e as unidades de choque”, diz.
O relatório descreve até mesmo a “metodologia de agressão” aplicada pelos grupos violentos ligados ao Governo contra manifestantes e a colaboração policial. “A Polícia Nacional intervém controlando a área, impondo cordões de isolamento, desviando o tráfego, usando gás lacrimogêneo, sem dirigir diretamente o ataque, mas deixando que isso aconteça”. Os peritos dizem que quando “o método tradicional de repressão” fracassou e as manifestações aumentaram, o Estado iniciou uma fase mais repressiva e violenta, caracterizada pelo uso desproporcionado e indiscriminado de armas de fogo “que se voltaram diretamente contra os manifestantes”.
A onda de violência deixou pelo menos 109 mortos, mais de 1.400 feridos e 690 presos, entre 18 de abril e 30 de maio. A grande maioria das mortes ocorridas nesses 42 dias se deveu a disparos de arma de fogo durante investidas policiais e de grupos paramilitares.
A estratégia repressiva não se limitou à polícia e incluiu tortura e agressões sexuais nas prisões, manipulação judicial e até mesmo demissões em hospitais que atendiam jovens feridos. “O sistema de justiça criminal –Ministério Público e Judiciário– atuou como uma peça a mais do esquema de violação. Das 109 mortes violentas, 100 nem sequer foram levadas à Justiça, isto é, estão impunes. Dos nove casos que resultaram em processos, seis correspondem a vítimas que têm alguma relação com o Estado da Nicarágua ou com o partido do Governo. Em relação aos hospitais, o relatório afirma que muitos médicos que trataram os feridos foram demitidos e “até tiveram que deixar o país por medo de represálias”.
As investidas nas ruas foram acompanhadas de uma campanha de criminalização das vítimas, que o Governo criou com um inflamado discurso de construção de um inimigo e desclassificação dos manifestantes, “apresentados como jovens manipulados, vândalos, golpistas, terroristas”, diz o relatório.
Para o GIEI, as condutas de Daniel Ortega, Rosario Murillo e alguns ministros e chefes de polícia devem ser considerados crimes de lesa-humanidade e nenhum dos acima mencionados deveria receber uma anistia.
Já o Governo sandinista argumentou que a Comissão, o GIEI e o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos são uma “plataforma para a divulgação de informações falsas para promover internacionalmente sanções contra nosso país”, disse o ministro das Relações Exteriores, Denis Moncada. O chanceler também acusou o secretário-geral da OEA, Luis Almagro, de participar “da escalada criminal, intervencionista, promovendo atividades terroristas na ordem política, econômica e militar que violam os direitos humanos do povo nicaraguense”. As ações de Almagro “demonstram que as ações realizadas pelos órgãos da OEA e da ONU respondem à estratégia de sufocar o povo da Nicarágua”, afirmou Moncada.
TRUMP ASSINA AS SANÇÕES CONTRA DANIEL ORTEGA
O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, assinou nesta quinta-feira o projeto de lei conhecido como “Nica Act”, que estabelece o bloqueio à Nicarágua de empréstimos de instituições financeiras internacionais, além de impor sanções individuais a funcionários do Governo que, segundo Washington, participaram da repressão contra as manifestações que exigem desde abril o fim do regime. A lei estabelece que os empréstimos de instituições como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) estarão condicionados a que o Governo sandinista mostre interesse em organizar eleições livres e transparentes.
Ortega controla o Tribunal Eleitoral e desde 2007 usou esse poder para garantir duas reeleições contínuas. Ortega reconheceu que a nova lei –aprovada por consenso entre democratas e republicanos– afetará a já frágil economia nicaraguense.