Ex-presidente diz que excesso de generais expõe fraqueza de Bolsonaro. Ele enxerga reação em defesa da democracia e diz que ideias de Guedes estão erradas para o momento
Carla Jiménez, Flávia Marriro e Naiara Galarraga Górtazar, do El País
O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que vivenciou uma guerra mundial, a ditadura e o exílio, parece bem adaptado à reclusão em sua casa de São Paulo. Prestes a completar 89 anos, tem no coronavírus uma ameaça muito grave. Há dois meses se relaciona somente por telefone com seus filhos e netos. Sociólogo e professor, continua sendo um intelectual clássico, ainda que também mande recados pelo Twitter. Na manhã desta sexta-feira, 29, falou sobre o presidente Jair Bolsonaro, os militares, a pandemia e a economia em uma entrevista ao EL PAÍS Brasil transmitida ao vivo. O ex-presidente enxerga a democracia brasileira atacada por dentro dela mesma, mas enxerga reação. Ele mesmo acaba de assinar um manifesto a favor da democracia feito pelo movimento Estamos Juntos que une intelectuais, artistas e políticos de diversos partidos.
Durante a pandemia, Fernando Henrique escolheu seu lado com clareza na dicotomia em que a política brasileira se move. “Entre economia e vida, de que lado? Eu estou do lado da vida. Há pessoas que estão do lado do mercado. Tentaremos fazer com que as duas coisas sejam compatíveis e nos preparar para o que vem depois”, diz.
Cardoso, presidente de honra do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que com 31 deputados é o quarto maior grupo parlamentar, está preocupado, mas também não acredita que o Brasil está em um ponto de não retorno. Não neste momento. Vê sinais inquietantes, mas também instituições que respondem aos ataques. O homem que ocupou a Presidência entre 1995 e 2002 deixa claro seu desgosto com Bolsonaro: “O presidente quer mais poderes, como se não tivesse suficiente. O que precisa fazer é exercer o que tem”, responde pela tela do computador. Atrás dele, uma estante repleta de livros e uma diminuta rainha Elizabeth II de plástico que acena.
Apesar do ruído cada vez mais presente sobre uma eventual intervenção militar no Brasil, e os constantes desmentidos dos ministros vindos das Forças Armadas, Cardoso destaca que neste momento não vê riscos. Mas faz uma advertência após lembrar que é filho de um general e neto de um marechal. “Acho que os militares não desejam nesse momento assumir o poder, um golpe. Mas como as democracias morrem? Não precisa ser um golpe militar. O próprio presidente pode assumir poderes extraordinários. E pode tomá-los. Há alguma possibilidade de que ocorra? Diria que não há possibilidade nas condições atuais no Brasil. Podem existir tentativas nessa direção? Podem existir”. Significa, portanto, estar alerta. “Não se pode deixar que a democracia seja erodida de dentro”. Por isso considera essencial levantar a voz quando alguém cruza os limites.
“Quando alguns militares falam é sempre para defender a Constituição. Não estão apoiando abertamente o que dizem alguns ministros e muitas vezes o próprio presidente. Acho que esse é um momento em que é preciso falar claro”.
“Ninguém dá dinheiro a você se acha que não está avançando. Começa a existir algo que não ocorria ao Brasil: começam a achar que não somos confiáveis.”
Mas não é só o que dizem e não dizem os membros do Governo que vêm das Forças Armadas. É também sua crescente presença em órgãos governamentais de todos os tipos, um desembarque inédito desde o final da ditadura, em 1985. “Quando um Governo começa a nomear muitos militares é porque está frágil”, ressalta. E no caso de Bolsonaro, um capitão da reserva, porque é lá nas Forças Armadas que encontra sua rede contatos, mas “o resultado é que o Governo terá um rosto militar. E os responsáveis pelos erros do Governo, queriam ou não, serão os militares”. Incluindo o que acontecer na pandemia de coronavírus. “Nesse momento não, mas depois, sim”. Um general dirige o Ministério da Saúde interinamente após o presidente demitir seus dois predecessores.
Cardoso lembra algo que há pouco tempo parecia desnecessário frisar. Que não se pode dar a democracia como certa, é preciso cuidá-la como se fosse uma planta e defendê-la cotidianamente. O Brasil de Bolsonaro é cenário de constantes ataques à separação de seus poderes, de seus ministros, seus filhos e seguidores. O assédio à imprensa é cada vez mais frequente. E o próprio mandatário, um saudoso da ditadura, participou de vários atos nos quais se pediu uma “intervenção militar”. Os alertas do ex-presidente Cardoso são calmos, sem estridências: “Existem vários sinais aqui, para dizer suavemente, que são inquietantes”.
Em sua opinião o atual presidente não está à altura do cargo que ocupa. “Ainda temos democracia. Está sendo destroçada, atacada. É responsabilidade do presidente velar pela democracia? Sim. Está velando por ela? Não. Está dizendo coisas que não são apropriadas ao chefe de Estado”.
Apesar de tudo, Cardoso considera que a situação não está madura para um impeachment, que, frisa, “não pode ser um projeto de oposição”. Lembra que Bolsonaro mantém uma base forte, na qual também existem muitos fanáticos.
Ele, que tem tantos contatos no mundo inteiro, é consciente de como a imagem de sua pátria se deteriorou nos últimos tempos. Algo que o modo de Bolsonaro de enfrentar a pandemia agravou. E isso será um problema para reativar a economia, para o que vê a cooperação internacional como imprescindível. Não será fácil. “Ninguém dá dinheiro a você se acha que não está avançando. Começa a existir algo que não ocorria ao Brasil: começam a achar que não somos confiáveis”. O horizonte é sombrio: “Após algum tempo, a pandemia não existirá, mas sim desemprego e falta de crescimento econômico. E podem ocorrer mobilizações sociais. Precisamos nos preparar para viver com isso, e não para contê-lo”.
No plano econômico, considera que as receitas com as quais o ministro Paulo Guedes trabalhava já não servem nessa conjuntura. “Ele tinha um rumo, mas a crise o atingiu. Suas ideias são incorretas agora”.
Ainda que anseie por viajar e comer nos restaurantes de seu bairro, afirma que só sairá de casa quando autoridades e as recomendações sanitárias permitirem.
Leia a seguir alguns dos principais trechos da entrevista, e assista a íntegra no canal do youtube do EL PAÍS Brasil.
Impeachment de Bolsonaro
O impeachment sempre deixa uma marca para as instituições, na cultura do povo. Nós já tivemos recentemente dois impeachments. Mais um é complicado. O impeachment não pode ser um projeto dos opositores. Não tenho por que defender o presidente Jair Bolsonaro. Não votei, nele, estou contra ele, e ele sabe disso. Ele queria me fuzilar quando eu era presidente…
A democracia brasileira está morrendo?
Espero que não. Temos uma sociedade muito dinâmica, e uma imprensa muito livre, e que fala as coisas. Reage, tem como reagir aos ataques. Na ditadura, não tem como, eles te prendem. Fui exilado, perdi a cátedra. É difícil, é outra situação. Eu estive na Espanha no período duro, é outra situação. Não quer dizer que não temos de olhar com preocupação, pode chegar. Se a sociedade, se os líderes e instituições reagirem vai mal, se deixa só o impulso prevalecer, vai mal, vai mal. Qualquer que seja a intenção que esteja no poder. No passado, em 1964 , havia luta entre EUA e URSS, e havia gente contra essa realidade. Imagina que marechal Castello Branco queria ditadura. Nunca. Mas as coisas vão se encadeando. É preciso prestar a atenção e barrar. Bolsonaro reclama do ministro que falou da reunião ministerial [Sergio Moro] e não reclama dos disparates da reunião. Espero que se chegue até a eleição. Espero. Não se pode aceitar a erosão da democracia por dentro, e por fora. É preciso defender a Constituição.
Luta contra inimigos irreais, como nos EUA
A questão no Brasil, como é um pouco nos EUA, é de teia de aranha na cabeça. De atraso. Lutando contra inimigos que não são reais. Terra é plana. Que é isso. Contrassenso. Inspiração ideológica, de lideres que são gurus, que nada tem a ver com a ciência. Isso é atraso. Mas ele foi eleito. Posso achar que foi erro. Mas outro não. Ele tem uma base de apoio. Melhor para o futuro, em termos de história do Brasil, que se chegue a convencer o povo a votar melhor.
Reação em defesa da democracia
Começa a haver reação. ABI [Associação Brasileira de Imprensa] protestando, setores organizados protestam. Entidades, editoriais dos jornais. Por que não reagimos? Estamos com coronavírus. Difícil mobilizar o povo quando não se tem medo. Isso explica, mas não justifica. Todos que têm responsabilidade política têm de se manifestar. Os partidos no Brasil são muito fragmentados e não são mais indutores do comportamento público. Não controlam a opinião pública. Tribunais dizendo, imprensa dizendo.
Militares e Constituição
Nunca vi um militar falar contra a Constituição. Quando alguns militares falam dão um jeito de defendê-la. Não estão abertamente subscrevendo o que dizem alguns ministros e o próprio presidente muitas vezes. Acho que nesta hora é preciso falar, dizer claramente. “Não pode, está errado entrando em áreas de competência que não são suas. Precisa manter a liberdade de imprensa. E mais, a economia sofre as consequências de tudo isso. O mundo mudou e sobretudo o mundo tem medo do que está acontecendo aqui. A incerteza. É precisar dar um rumo. A principal função do presidente é dar um rumo. Aqui há dúvidas sobre as duas questões.
Militares demais no Governo, força de menos
Quando um Governo começa a nomear muito militar, é porque o Governo está fraco. Eu vi isso no Chile, com o presidente Allende. Nomeava muito militar para fingir que tinha força. Aqui não é tanto para fingir que tem força, mas porque são os que ele conhece. Riscos? Militares no Brasil não têm sentido de mercado. Empresa, mercado, lucro. Nem corrupção, não gostam. Mas se habituam às benesses do Governo. Quem não gosta? Tem automóvel, tem casa, tem salário, dobra o salário. Pouco a pouco cria identidade automática, acontece. Ele nomeia essas pessoas porque tem pouco apoio. Eles não vão para lá para se beneficiar, eles vão lá para servir o país. A motivação pode ser qualquer. O resultado é que o Governo vai ter cara militar. E quem vai ser responsável pelos erros do Governo, queira ou não, serão os militares. Eles têm feito um certo esforço de dizer —nós estamos aqui, reiterando que forças militares servem ao Estado, ao Governo. Nós temos que reiterar essa ideia, para que isso se incuta na cultura brasileira. Que militares são órgão de defesa das instituições do Estado.
Militares responsabilizados pela pandemia
Neste momento não, depois vão. Não é bom para eles. Tem muito general. Não tenho nada contra generais. Um ou outro pois têm capacitação técnica para tanto… Muitos generais [no Governo] fazem mal às Forças Armadas, dá essa sensação de tutela militar. Não é compatível com tempo moderno, contemporâneo, com as instituições brasileiras. Os militares terão sempre força, poder.
Ideias erradas de Paulo Guedes para o momento
O ministro da Economia, Paulo Guedes, tem um rumo. Mas o rumo dele bateu com uma crise. As ideias dele estão erradas para o momento, não tem como fazer. Ele ficou meio perdido. Já deveria ter mexido para poder funcionar. É preciso na política sempre falar para o coração e para a cabeça das pessoas. Ter sentimento, as pessoas precisam acreditar naquilo. Neste momento falta o caminho de crença. Entendo a aflição do presidente atual, como eu tive, de querer ir mais depressa. Mas isso aumenta o número de mortos. Entre a economia e a vida, você fica de que lado? Eu fico do lado da vida. Tem gente que fica do lado do mercado. Vamos tentar compatibilizar, e preparar o que vem depois.
Falta liderança contemporânea no Brasil
Hoje ninguém pode falar porque tem medo, está em casa., tem medo da pandemia. Depois de amanha não tem pandemia, mas tem desemprego, e falta de crescimento econômico. E pode haver também movimentação social. Precisamos nos preparar para conviver com isso, e não coibir. A tendência autoritária vai querer coibir. Mas os democratas, vamos não coibir, orientar para um lado, convencer, vencer junto. O líder que quer vencer sozinho está errado. Não vence nada. Só vence com a espada. E ele não tem a espada ainda. E espero que nunca tenha. Porque se tem espada, decepa as cabeças. E se não tem, tem que ganhar as cabeças. Falta no Brasil liderança. E não só no Brasil, está escasso no mundo. E outro dado. Precisa ser liderança contemporânea com o mundo. O mundo é científico, tecnológico. E o mundo será da ciência e da tecnologia, queiramos ou não.
A tese Estado mínimo x Estado forte pós pandemia
Isso deve mudar [na cabeça da sociedade brasileira]. Depende da ação, se colocar de maneira forte e convincente. Quando Sistema Único de Saúde (SUS) foi proposto, nós apoiamos. É importante, dá assistência a quem não tem dinheiro. Mostra sua valia agora. O problema é que ele é subfinanciado. Agora nós sabemos, vamos saber depois? Os homens têm memória mas também esquecem. Eu não quero que esqueçam. Vão falar da pandemia se continua falando sobre. E não da pandemia, mas falar da pobreza e da desigualdade. Tem que fazer economia social de mercado. Governo não tem que ser grande nem pequeno. Tem que funcionar. O mercado não dispensa regulamentação. Neste momento de crise, todo mundo pede Governo… dinheiro, dinheiro.
De ajuda emergencial a renda básica permanente
A necessidade se impôs. É um passo importante. Pode ter que precisar aumentar imposto. Quem tinha ideia fixa [sobre renda universal] era o deputado Eduardo Suplicy. Houve condição depois de que as famílias colocassem os filhos da escola. A ideia do Bolsa Família nasceu no meu Governo. Houve o Bolsa Escola, depois teve um Bolsa Saúde. Depois o Governo Lula juntou tudo e virou Bolsa Família, e transformou em instrumento político. Está feito. E acha que alguém vai tirar? Não, porque tem sentido social. No mundo do futuro, com economia que se tecniciza, vai ter que ajudar. Tem que ter dinheiro que vem de quem tem mais.