Para historiador, militares “não se reconhecem como funcionários, mas sim tutores da nação”. Especialistas divergem sobre legalidade de mensagens do comandante Villas Boas
Por Felipe Betim, do El País
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No contexto de polarização política, e às vésperas de um julgamento que poderia determinar o destino de Lula, o general colocou o Exército ao lado dos “cidadãos de bem” que repudiam “a impunidade” e garantiu que a instituição se mantém atenta “às suas missões institucionais” — sem detalhar quais são elas. Palavras que reverberaram em todo o país. Trata-se de uma ameaça de intervenção militar caso o ex-presidente Lula fique livre e seja eleito? O general extrapolou suas funções legais ao se posicionar sobre um tema sobre um assunto que diz respeito à Justiça? Durante todo o seu mandato, o presidente Michel Temer (MDB) buscou agradar os setores militares seja através de declarações ou nomeações, colocando-os de volta no núcleo decisório do país — sobretudo após a intervenção federal no Rio de Janeiro. Pouco a pouco, foram ganhando espaço e voz política. Estaria o Brasil voltando aos tempos em que a opinião e os comunicados dos altos comandos militares merecem destaque no noticiário?
Pelo sim pelo não, tanto o comandante como os principais generais que incensaram o incendiário tuíte de Villas Bôas à véspera do julgamento no STF, silenciaram nos dias seguintes sobre questões nacionais, inclusive durante a decreto de prisão do ex-presidente Lula e os dias seguintes em que negociou sua entrega à PF. A única exceção foi o general de reserva Paulo Chagas que manteve seu estilo ‘sem papas na língua’, com críticas a Lula, mas sem palavras que pudessem soar a ameaça.“O PT, para conquistar e manter-se no poder, escamoteou a verdade, iludiu incautos, agradou bandidos e praticou, sem pudor, todas as formas de imoralidade. Por gosto e incompetência, criou uma crise generalizada e gerou um caos cuja paternidade não assume”, diz um dos tuítes dele, do dia 8. Chagas é pré-candidato ao governo do Distrito Federal.
Desde que assumiu o poder, Temer vem governando de braços dados com os militares. Nomeou o general linha-dura Sérgio Etchegoyen como ministro do Gabinete de Segurança Institucional e lhe conferiu influência dentro do Governo; indicou o general da reserva Sebastião Roberto Peternelli Júnior, defensor da ditadura militar, para a FUNAI — e depois recuou diante das reações negativas. Também escolheu o comandante militar do leste, o general Walter Braga Netto, como interventor federal no Rio. Mantém, também, na pasta de Defesa o general da reserva Joaquim Silva e Luna, o primeiro militar desde o Governo FHC a ocupar a pasta. Em março deste ano, disse que o povo brasileiro “se regozijou” com a “centralização absoluta do poder” após o golpe militar de 1964. A mensagem de Villas Bôas era uma extensão desse espaço dado por Temer.
No dia 6 de abril, o comandante disse ao jornal O Globo, por meio de seu porta-voz, general Otávio Rêgo Barros, do Centro de Comunicação do Exército, que a polêmica com o tuíte, era “assunto ultrapassado”. Nem ele, nem a maioria dos generais
Das ações similares no combate à insegurança pública depreendidas do estudo comparativo em outros países, destaco como 3º ponto que: A sociedade deve ser estimulada a reagir à ideia de que “o criminoso é vítima da mesquinheza social”. Vítima é a sociedade. Criminoso é criminoso!
Conduzo seguidas reuniões sobre a gestão dos cortes orçamentários impostos ao @exercitooficial. Fazemos nosso dever de casa, mas há limites
Daniel Aarão Reis, professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), classifica a manifestação de Villas Bôas como “intempestiva e completamente indevida”. Para ele, que foi guerrilheiro durante a ditadura militar, o Brasil possui “uma tradição histórica” de sofrer “com a ingerência das Forças Armadas”. Algo que “remonta à proclamação da República, fruto de um golpe militar”. Isso porque “os militares não se reconhecem nem querem ser reconhecidos como funcionários públicos uniformizados, mas como tutores da nação, uma espécie de ‘anjos da guarda’ da República”, explica ao EL PAÍS.
Autor de livros como Luís Carlos Prestes – Um revolucionário entre dois mundos(Companhia das Letras, vencedor do prêmio Jabuti em 2015) e Ditadura e Democracia no Brasil (Zahar), Aarão Reis também cita as “intervenções golpistas” que instauraram a ditadura do Estado Novo (1937-45) ou a última ditadura civil-militar (1964-85). Mas também fala de uma série de “ameaças, veladas ou explícitas”, ao longo do século XX. Com a redemocratização, ele diz, “os constituintes de 1988 capitularam face ao lobby das Forças Armadas e mantiveram na Carta Magna artigos que autorizam a intervenção militar para ‘garantir a lei e a ordem’ (GLO)”. Depois, entre os governos FHC e Dilma, as Forças Armadas viram o Ministério da Defesa ser ocupado por civis, a criação da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos da ditadura militar e, posteriormente, a constituição da Comissão Nacional da Verdade. Submeteram-se ao poder civil e se voltaram para os quartéis, perdendo relevância na vida política do país.
No entanto, Aarão Reis lembra que, paralelamente a esse processo, todos os presidentes civis recorreram repetidas vezes ao Exército, a partir de decretos de GLO, para a área de segurança pública. “Não tiveram a coragem de propor que se alterasse esta situação, de sorte que os militares permanecem como uma espécie de ‘estado dentro do estado’, com justiça própria, educação própria, previdência própria. E com este vezo de intervir como se fossem tutores da nação. Assim, nesta perspectiva, o general Vilas Boas reiterou esta tradição [ao se manifestar no Twitter]”.
Durante o julgamento do habeas corpus de Lula, o ministro do STF Celso de Mello, chamou a atenção de Villas Bôas de maneira indireta, ao falar sobre movimentos que “parecem prenunciar a retomada, de todo inadmissível, de práticas estranhas e lesivas à ortodoxia constitucional, típicas de um pretorianismo que cumpre repelir”. Por ser decano no tribunal, isto é, seu membro mais antigo, ele costuma seguir a tradição de puxar para si a defesa institucional da Corte durante sessões plenárias. “Intervenções castrenses quando efetivadas e tornadas vitoriosas, tendem a diminuir, quando não a eliminar, o espaço institucional reservado ao dissenso, limitando a possibilidade de livre expansão da atividade política e do exercício pleno da cidadania, com danos à democracia”.
Em nota pública, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal, foi mais explícita: “Ameaças explícitas ou veladas de violação à autonomia do Supremo Tribunal Federal por parte do Poder Executivo são inadmissíveis em quaisquer hipóteses. Mais grave se partem da cúpula de instituições que detém o monopólio do uso da Força Armada no país”. Ressaltou ainda que “um ato de ameaça ao Supremo Tribunal Federal é da mais alta gravidade constitucional e pode caracterizar, em tese, crime de responsabilidade (Lei nº 1079/50, art. 6º, 6: São crimes de responsabilidade contra o livre exercício dos poderes legislativo e judiciário e dos poderes constitucionais dos Estados: usar de violência ou ameaça, para constranger juiz, ou jurado, a proferir ou deixar de proferir despacho, sentença ou voto, ou a fazer ou deixar de fazer ato do seu ofício)”.
Decreto regula o comportamento dos militares
Em meio a aplausos de setores conservadores (militares da ativa e da reserva, movimentos de direita, entre outros) e ao repúdio daqueles que enxergam um viés golpista nas afirmações (políticos de esquerda, Anistia Internacional, acadêmicos, entre outros), especialistas divergem a respeito da legalidade do posicionamento do general. No centro do debate está um decreto assinado em 2002 pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) que regula o comportamento das tropas. No anexo 1, considera-se uma transgressão os seguintes itens:
- 56. Tomar parte, em área militar ou sob jurisdição militar, em discussão a respeito de assuntos de natureza político-partidária ou religiosa;
- 57. Manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária;
- 58. Tomar parte, fardado, em manifestações de natureza político-partidária;
- 59. Discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado.
As normas são dirigidas a todos os militares, mas Villas Bôas não é qualquer soldado: é o comandante do Exército e fala pela instituição. Ao se manifestar, possuía respaldo de seus comandantes superiores, no caso o Ministério da Defesa e o presidente Michel Temer, segundo afirmou o professor da USP Dircêo Torrecillas Ramos, especialista em direito constitucional militar, ao jornal Nexo. “Villas Bôas manifestou uma posição dele e da instituição. É uma questão de liberdade de expressão. Ele tem o direito. Ele está respaldado por seus superiores. Não há quebra de hierarquia. É diferente de um subordinado opinar sobre algo que não lhe compete. Ele é o comandante do Exército e tem autorização das autoridades políticas para dizer o que disse”, explicou. O general de fato não recebeu represálias. Em nota para a imprensa, o Ministério da Defesa — comandando pelo general da reserva Joaquim Silva e Luna — afirmou que Villas Bôas “mantém a coerência e o equilíbrio demonstrados em toda sua gestão, reafirmando o compromisso da Força Terrestre com os preceitos constitucionais, sem jamais esquecer a origem de seus quadros que é o povo brasileiro”. Temer não se pronunciou, mas na última quarta-feira, fora da agenda oficial, esteve na casa de Villas Bôas para um encontro reservado. Segundo a Folha de S. Paulo, ambos teriam tratado sobre a intervenção no Rio.
Por sua vez, Vinicius Mariano de Carvalho, professor do Brazil Institute do King’s College, em Londres, argumentou à BBC Brasil que a mensagem do general reforçava a posição de que “o Exército não interferirá em nada”. Para ele, o tuíte se dirigia sobretudo à própria tropa, com o objetivo de se “posicionar internamente para evitar rachaduras da coesão”. As mensagens na rede social foi precedida, horas antes, no meio da tarde, por telefonemas a generais quatro estrelas. Eles foram avisados sobre o pronunciamento que faria às 20h39 no Twitter. Suas declarações destoam do perfil moderado pelo qual Villas Bôas é conhecido e admirado no meio político. Uma possível interpretação, levantada pelo jornal O Globo, é a de que sua mensagem serviu para aplacar a pressão de generais linha-dura, insatisfeitos com o que consideram uma apropriação política do Exército pelo Governo Temer, sobretudo com a intervenção no Rio. Assim, teria adotado um tom mais duro que o habitual para manter o controle e o restante da tropa unida em torno de si. “Eu li o Twitter várias vezes e me pareceu que ele apenas resguarda a Força, evita vozes aventureiras e outra vez mostra que a responsabilidade sobre a crise não está nas mãos das Forças Armadas”, afirma Carvalho.
Mas para Aarão Reis, o general, “a rigor, cometeu uma ilegalidade”. E “deveria ser chamado às falas”. “Mas quem o faria? O presidente Temer é uma figura política patética, inteiramente desmoralizada. O Congresso Nacional é um cadáver que apodrece a céu abeto. O STF tornou-se um palco de disputa de vaidades. Quanto ao ministro da Defesa, é um colega do general Villas Bôas, superior apenas formalmente”, argumenta.
O historiador da UFF vê como urgente a defesa da democracia, a qual “está balançando e só não vê isto quem não quer”. E conclui: “Não precisamos de tutores ou de anjos da guarda, uniformizados ou não, tampouco de líderes carismáticos, precisamos é que o povo se organize autonomamente no contexto de uma frente social e política plural, de entidades, movimentos sociais e lideranças políticas para defender a permanência, e o aperfeiçoamento, da democracia no Brasil”.