Presidente eleito deu bateria de cinco entrevistas às TVs nesta segunda e defendeu aprofundar reforma trabalhista
Por Flávia Marreiro e Érica Saboya, do El País
O ultradireitista Jair Bolsonaro concedeu nesta segunda-feira suas primeiras entrevistas como presidente eleito na qual mesclou a tentativa de suavizar sua retórica virulenta contra opositores à reafirmação de ameaças e a defesa de projetos radicais na área de segurança que devem enfrentar resistência na cúpula do Judiciário. As cinco principais TVs do país encadearam uma sequência de aparições do capitão reformado no Exército, algumas ao vivo e outras gravadas, nas quais ele afirmou que pretende negociar a aprovação da reforma da Previdência ainda neste ano. Bolsonaro anunciou que cogita convidar o juiz Sérgio Moro, da Operação Lava Jato, para uma vaga do Supremo Tribunal Federal ou para o Ministério da Justiça. No Jornal Nacional, da TV Globo, o principal noticiário televisivo do país, fez também novos ataques à imprensa e ao jornal Folha de S. Paulo, a quem ele voltou a ameaçar com o corte de verba de publicidade federal.
Leia as principais declarações das entrevistas contextualizadas e analisadas.
Reforma da Previdência
“Semana que vem estaremos em Brasília e buscaremos junto ao atual Governo aprovar alguma coisa do que está em andamento lá [no Congresso], como a reforma da Previdência, se não num todo, em parte do que está sendo proposto, porque evitaria problemas para o futuro governo que, no caso, seria eu. Vamos buscar maneiras de evitar novas ditas pautas bombas, porque temos um déficit monstruoso e não podemos aumentar esse déficit para o ano que vem sob o risco de um Brasil entrar em colapso”
“Todo mundo tem que entender que a melhor reforma não é a minha, não é a sua, é aquela que passa no Parlamento. Se quiser impor os 65 anos, a chance de derrota é muito grande. Se nós dermos um ano agora, o ano que vem dermos mais um ano, vamos para 62. Afinal de contas, a proposta de 65 não é para agora”
O contexto e as implicações:
A promessa de tentar aprovar a reforma da Previdência ainda em 2018 deve ser bem recebida por investidores e a maior parte dos economistas, que defendem que a mudança é urgente para retirar as contas públicas de uma rota insustentável. O presidente Michel Temer se disse disposto a tentar aprovar a reforma neste ano, mas há, em primeiro lugar, a dificuldade de mobilizar o Congresso na reta final para passar um tema extremamente impopular. Bolsonaro e seus auxiliares criticam o projeto de Temer, que já tramita na Câmara, e emitem declarações contraditórias sobre o assunto. O presidente eleito fala em uma reforma gradual, no qual a idade mínima para homens comece subindo para 61 anos, e não para 65 anos como propõe o atual governo, o que melhoraria as chances de aprovação, mas podem desagradar as expectativas do mercado. Além disso, enquanto o presidente eleito fala em aprovar “parte” da reforma, Onyx Lorenzoni, seu futuro ministro-chefe da Casa Civil, disse nesta segunda-feira que quer que se discuta o tema “uma única vez”. Outro obstáculo e que um dos principais rombos do sistema é a aposentadoria de militares, e a expectativa é que o futuro Governo não altere isso.
Sérgio Moro no Ministério da Justiça ou Supremo
“Pretendo, sim, (convidar Sérgio Moro) não só para o Supremo, mas quem sabe até para o Ministério da Justiça. Pretendo conversar com ele, saber se há interesse dele nesse sentido também. Se houver interesse, com toda certeza será uma pessoa de extrema importância para um Governo como o nosso.
O contexto e as implicações:
O juiz federal Sérgio Moro, do Paraná, se notabilizou pela Operação Lava Jato e, especialmente, por ter condenado por corrupção ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o que culminaria na prisão do petista e no impedimento de que ele concorresse à Presidência da República. Não há vagas no Supremo Tribunal Federal no momento, de modo que, se nada mudar, o mais provável é que o convite seja feito para a Justiça, uma pasta estratégica que tem o comando da Polícia Federal. De acordo com as pesquisas, Moro não está no auge de sua popularidade nem é livre de críticas por tomar atitudes lidas como motivadas politicamente, como divulgar trechos da delação premiada do petista Antonio Palocci antes do primeiro turno. De todo modo, se o juiz aceitar, Bolsonaro agradaria a base antipetista ferrenha que idolatra o juiz.
Porte de armas e ‘licença para matar’
“A orientação nossa é que a ‘efetiva necessidade’ (exigida no Estatuto do Desarmamento para compra de arma de fogo) está comprovada pelo estado de violência em que a gente vive no Brasil. Nós estamos em guerra. Nós queremos mexer na lei e também diminuir de 25 para 21 anos de idade (a idade mínima para o porte de armas). E mais ainda: dar o porte definitivo para o cidadão.”
“O porte tem que ser flexibilizado também. ‘Por que um caminhoneiro não pode ter porte de arma de fogo?’ Um caminhoneiro dorme no posto de gasolina e quando acorda não mais nenhum step. Então, você casar isso com o excludente de ilicitude, que eu digo que é em defesa da vida própria e de terceiros, do patrimônio próprio e de terceiros. Pode ter certeza que a bandidagem vai diminuir. Porque um caminhoneiro armado, ao reagir a alguém que estiver furtando ou roubando o seu step, ele vai dar o exemplo para a bandidagem. Seguinte: atirou, o elemento está abatido, em legítima defesa. Ele vai responder, mas não tem punição. Isso vai diminuir a violência no Brasil com toda certeza”
“Temos que abandonar o politicamente correto de achar que com todo mundo desarmado o Brasil vai ser melhor. Não vai ser melhor […] A arma de fogo, mais do que garantir a vida de uma pessoa, garante a liberdade de um povo”
O contexto e as implicações:
Derrubar o Estatuto do Desarmamento é uma das principais promessas de campanha de Bolsonaro e há vários projetos tramitando na Câmara a respeito, que poderiam ser colocados em votação ainda neste ano. O presidente eleito quer liberar o porte, a posse e reduzir a idade mínima necessária para comprar uma arma, ou seja, fazer uma guinada radical na atual política. Especialistas criticam a possibilidade porque dizem que ela vai aumentar a violência e o número de homicídios, que já é recorde. Num reflexo da perspectiva de liberação, as ações da fabricante de armas Forjas Taurus têm subido.
O segundo ponto mencionado é transformar em automático o chamado “excludente de ilicitude”, que é prerrogativa que todos têm, inclusive policiais, evocar legítima defesa quando cometem um homicídio. Bolsonaro não detalha, mas quer a isenção de punição seja ampla e para todos, espécie de “licença para matar”, não apenas em defesa da própria vida ou de terceiros, mas em nome da defesa do patrimônio. A proposta, uma das mais radicais do presidente eleito, tem de passar no Congresso, mas deve ter resistência importante no Supremo Tribunal Federal. “Isso seria claramente declarado inconstitucional”, afirma Oscar Vilhena, da FGV. Para analistas, a simples defesa de Bolsonaro da medida pode impactar nas Polícias Militares, já que funcionaria como um endosso dos homicídios cometidos pelos policiais. A taxa de violência policial no Brasil já é uma das mais altas do mundo e há baixíssimo índice de investigação dos homicídios cometidos pelos agentes. Para especialistas, a regra pode escalar o número de mortes violentas no país. A ex-senadora e candidata derrotada à Presidência, Marina Silva (REDE), criticou.
A entrevista do #BolsonaroNaRecord é preocupante sob muitos aspectos, mas nenhum é tão preocupante quanto a sua ideia fixa em querer induzir a sociedade a acreditar que poderá resolver o grave problema da violência fazendo justiça com as próprias mãos
Minorias e mentira sobre o ‘kit gay’
“Eu queria saber, que me definissem, o que é minoria. Quais os direitos de tais minorias? Nós somos todos, não tem diferença minha para você […] Somos todos iguais, como está no próprio artigo quinto na Constituição. Agora, não podemos pegar certas minorias e achar que têm superpoderes, diferentes dos demais. Se conseguirmos igualdade para todo mundo, todos se sentirão satisfeitos”
“Ganhei o rótulo por muito tempo de homofóbico. Na verdade, eu fui contra um kit, feito pelo então ministro da Educação, (Fernando) Haddad, em 2009 para 2010, que chegaria nas escolas um conjunto de livros, cartazes e filmes onde passariam crianças se acariciando e meninos se beijando. Não poderia concordar com isso. E a forma como eu ataquei essa questão é que foi um tanto quanto agressiva. Tivemos, em parte, sucesso porque no ano seguinte, a própria presidente Dilma Rousseff resolveu recolher esse material, mas o rótulo ficou. Isso aconteceu em razão no Nono Seminário LGBT Infantil na Comissão de Direitos Humanos na Câmara.
O contexto e as implicações:
Bolsonaro rejeita o conceito de minorias, mas nega ser depreciativo em relação a esses seguimentos da sociedade, como negros, índios, mulheres e homossexuais. Ele tem amplo histórico de declarações racistas, homofóbicas e misóginas e seu apoiadores mais radicalizados tem evocado o presidente eleito para hostilizar e, em alguns casos atacar diretamente, esse público. Durante a campanha, também houve episódios em que ele voltou a estigmatizar esses setores. Numa transmissão ao vivo via Facebook, em 12 de outubro, ele atacou a ex-ministra das Mulheres do Governo Dilma, Eleonora Menicucci. No ar na rede, Bolsonaro leu trechos de uma entrevista onde Menicucci falava que é bissexual e lembrou que ela, durante a ditadura, ficou presa com a ex-presidenta Dilma Rousseff. “Como uma mulher dessas pode representar todas as mulheres do Brasil?” Tem sido uma estratégia comum do presidente eleito dar declarações de tons diferentes a diferentes audiências.
Durante a entrevista, na TV Globo, Bolsonaro voltou a mentir sobre o chamado “kit gay”, termo pejorativo para um material antihomofobia que, à diferença do que ele afirma, não foi criado pelo petista Fernando Haddad. O presidente eleito voltou dizer que aconteceu na Câmara um seminário dedicado ao “LGBT Infantil”. O evento, na verdade, debateria a sexualidade na infância. A repulsa a respeito de dois temas foi amplamente explorado por Bolsonaro na campanha.
“Sou totalmente favorável à liberdade de imprensa. Temos a questão da propaganda oficial do governo que é uma outra coisa. (…) O jornal Folha de S.Paulo fez uma matéria, no dia 10 de janeiro, e a rotulou (Walderice Santos da Conceição) de forma injusta como (funcionária) fantasma. Só que nesse dia, 10 de janeiro, ela estava de férias. Então, ações como essa, como parte de uma imprensa que, mesmo se mostrando a injustiça que cometeu com uma senhora, ao não voltar atrás, obviamente que não posso considerar essa imprensa digna. Não quero que ela acabe. Mas no que depender de mim, na propagando oficial do governo, a imprensa que se comportar dessa maneira, mentindo descaradamente, não terá apoio do governo federal […] Por si só esse jornal se acabou, não tem prestígio mais nenhum. Quase todas as fake news que se voltaram contra mim partiram da Folha de S. Paulo.”
O contexto e as implicações:
Na TV Globo, Bolsonaro foi questionado sobre a ameaça que fez à Folha de S. Paulo via Twitter na semana anterior, prometendo cortar a publicidade federal se fosse eleito. O jornal, o maior do país, publicou reportagem afirmando que Walderice Santos da Conceição, lotada em seu gabinete na Câmara, na verdade prestava serviços particulares para ele no litoral do Rio. A Folha também publicou reportagem sobre a existência de um esquema ilegal bancado por empresas para dispara mensagens em massa via WhatsApp para favorecer Bolsonaro – o caso está sob investigação.
Os ataques ao jornal são a faceta mais visível da estratégia que emula a usada por Donald Trump contra a imprensa tradicional. Todo conteúdo incômodo é classificado como fake news. As ameaças provocaram reações de associações de jornalistas e das empresas jornalísticas. Jornalistas da Folha que fizeram reportagens críticas contra Bolsonaro e o WhatsApp do próprio jornal foram alvo de ataques virtuais coordenados. “O problema é o estímulo à intimidação, a ações coletivas para expor os profissionais e até suas famílias. Isso tudo não é condizente com a liberdade de expressão e com a liberdade de imprensa”, declarou, na semana passada, Daniel Bramatti, presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI).