El País: O tortuoso caminho do acordo da UE com o Mercosul até sua ratificação

França e Irlanda fizeram ressalvas à aprovação definitiva do tratado comercial, que poderia levar dois anos. As políticas de Bolsonaro neste período poderiam complicar ainda mais algumas posições.
Foto: El País
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França e Irlanda fizeram ressalvas à aprovação definitiva do tratado comercial, que poderia levar dois anos. As políticas de Bolsonaro neste período poderiam complicar ainda mais algumas posições

A União Europeia e os países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai) levaram 20 anos para fechar um acordo de livre comércio que derrubará mais de 90% das tarifas nos intercâmbios entre dois blocos que somam 773 milhões de consumidores. O maior pacto já assinado pela UE terá que ser ratificado pelo Parlamento Europeu e pelos 28 Parlamentos nacionais. E, apesar dos esforços dos negociadores, o acordo gera uma notável divisão dentro da UE. França, Irlanda, Polônia e Bélgica expressaram publicamente o receio com o possível impacto sobre seu setor agropecuário. Ao mesmo tempo, dezenas de organizações sociais pedem uma recusa à ratificação do pacto, por considerar que as políticas do presidente Jair Bolsonaro solapam os direitos dos povos indígenas e os esforços contra a emergência climática.

A Comissão Europeia por enquanto publicou um documento de 17 páginas que resume os principais aspectos do acordo. O relatório de impacto ambiental ainda não saiu, mas o texto tornado público afirma que os líderes do Mercosul assinaram um “artigo específico sobre a mudança climática” em que se comprometem com uma “linguagem forte” a “implementar efetivamente o Acordo de Paris”. Essa era a principal exigência que o presidente da França, Emmanuel Macron, pôs sobre a mesa — algo que ele também pede que conste em um eventual acordo comercial com os Estados Unidos.

Macron aplaudiu a inclusão dessas cláusulas no tratado da cúpula do G-20 em Osaka (Japão). Entretanto, ao longo da semana seus ministros foram questionando que a França possa assinar o acordo. E agiram assim justamente quando deram sinal verde à ratificação do Tratado de Livre Comércio UE-Canadá, por considerá-lo “muito positivo” pelo aumento das exportações (de 6,6%) que ele permitiu nos dois últimos anos.

A atitude com o Mercosul é diferente. Os relatórios em poder da Comissão indicam que o pacto aumentará em 10% as exportações da UE para esses quatro países, e em cerca de 4% no sentido contrário. Mas a França — junto com Irlanda, Bélgica e Polônia — manifestou por carta sua inquietação com as consequências dele para o campo europeu, em especial após aceitar uma quota anual de carne bovina de 99.000 toneladas. “Não teremos um acordo a qualquer preço. Esta história não terminou”, disse o ministro da Agricultura, Didier Guillaume. Também a Irlanda foi especialmente beligerante com o acordo. “Se tiver um impacto negativo sobre a economia e o emprego, obviamente votaremos contra”, afirmou o primeiro-ministro irlandês, Leo Varadkar.

O percurso institucional do acordo pode durar dois anos. Neste período, precisa passar pelos Governos e Parlamentos do Mercosul —na Argentina,o peronista Alberto Fernández, candidato à presidência, já indicou ser contra— e pelos Governos e Parlamentos dos 28 países da UE, pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho Europeu. E aí pode haver surpresas. O acordo com o Canadá, por exemplo, esteve por um fio porque o Parlamento da Valônia, uma região da Bélgica, o manteve bloqueado durante 10 dias e exigiu garantias para revogar seu veto. França e Irlanda alegam que não viram o acordo e portanto não podem respaldá-lo publicamente, mas fontes comunitárias insistem em que todos os países foram informados de tudo que estava sendo negociado. Mesmo assim, em Bruxelas nenhum dos funcionários consultados descarta surpresas no processo de ratificação dos países.

Outro possível foco de complicações é o Parlamento Europeu. Socialistas e populares poderiam se deparar com votos discordantes dentro de seus grupos. E, além disso, já não controlam a câmara, razão pela qual necessitarão do concurso de liberais ou verdes. O partido ambientalista já rejeitou de cara essa possibilidade. A eurodeputada Heidi Hautala avisa que se trata de “um mau compromisso”, que surge num “momento equivocado” e só serve para lustrar a imagem de Bolsonaro. E entre os liberais também poderia haver fissuras. Segundo fontes parlamentares, embora os holandeses e espanhóis tendam a apoiar o tratado, os franceses poderiam opor-se. “Até agora não vi o acordo, ninguém o viu, exceto a Comissão Europeia”, insistiu nesta semana Pascal Canfin, eurodeputado da plataforma Renaissance, de Macron, na rádio RTL.

As atas das reuniões da Comissão Europeia com as organizações civis refletem as principais preocupações no continente. Além do impacto sobre a agricultura e o gado, as plataformas insistiram especialmente na hostilidade de Bolsonaro à luta contra a mudança climática —ele chegou a dizer que “é uma coisa de ativistas que gritam”— e contra os direitos dos povos indígenas. Não por acaso, o acordo foi rubricado num momento em que a emergência climática está no topo da agenda da maioria dos países da Europa, com Os Verdes ganhando musculatura na Alemanha, Bélgica, França, Reino Unido e Finlândia.

A nova presidência rotatória, que cabe à Finlândia, propôs que até o final deste ano todos os países do bloco se comprometam a reduzir a zero suas emissões de dióxido de carbono em 2050. Entretanto, os 28 da UE sabem que não podem enfrentar esse desafio sozinhos. Por isso, governos como o francês acreditam que sua política comercial deve ser um catalisador para que outros Estados e regiões cumpram com Acordo de Paris. Para alguns sócios, os acordos devem ir inclusive além e ser também uma arma para que se respeitem os direitos sociais, trabalhistas e das minorias. Mais de 340 organizações sociais se dirigiram à Comissão para lhe recordar que “no passado, a UE suspendeu vantagens comerciais com países envolvidos em violações de direitos humanos, como Myanmar e Filipinas”. No seu entendimento, as políticas de Bolsonaro impedem a conclusão de um tratado comercial.

Os 28 estão alarmados com as ações do líder brasileiro. Isso foi deixado claro não só por Macron, mas também pela chanceler (primeira-ministra) alemã, Angela Merkel. “Vejo com preocupação o assunto das ações do presidente brasileiro [em relação ao desmatamento]”, disse Merkel, o que irritou Bolsonaro. Mesmo assim, a própria a Alemanha e outros Estados, como Espanha, Holanda, Portugal e Suécia, incentivaram a Comissão Europeia a fechar o acordo, de modo a lançar uma mensagem clara sobre as vantagens do livre comércio frente às políticas protecionistas do próprio Bolsonaro ou de Donald Trump. Fontes diplomáticas disseram, além disso, que o acordo serve para atar o Brasil ao Acordo de Paris e inclui artigos específicos sobre a luta contra o desmatamento, a proteção da biodiversidade e o cumprimento das convenções internacionais sobre exploração infantil, a não discriminação e a liberdade de associação.

Alguns sócios, segundo as mesmas fontes, são céticos a respeito. Mesmo assim, terão dois anos para avaliar os rumos das políticas de Bolsonaro: se de fato se mantém no Acordo de Paris ou, pelo contrário, se descumpre as disposições do pacto. E isso, contam fontes diplomáticas, poderia amplificar as vozes dos detratores do acordo e acrescentar ainda mais incerteza ao que ocorrer nos parlamentos nacionais.

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