Joana Oliveira, El País
“Paulo Gustavo não morreu de covid-19. Paulo Gustavo morreu de Brasil.” Essa é uma das milhares de mensagens que têm circulado nas redes sociais desde a noite de terça-feira, quando o país recebeu a notícia do falecimento do humorista de 42 anos, que deixou o marido, Thales Bretas, e dois filhos de um ano e nove meses. Ele estava internado em um hospital do Rio de Janeiro para se tratar da doença desde 13 de março e tornou-se uma das mais de 411.000 vítimas fatais da pandemia no país, mortas por “uma doença para a qual já existe vacina”, como não deixaram de lembrar os fãs do artista. A morte de Paulo Gustavo, um ator e humorista de personagens icônicos, como Dona Hermínia, que fazia rir e era apreciado nos mais diversos lados do espectro político, catalisou a dor coletiva e o ódio pela perda de quase meio milhão de brasileiros. A avaliação mais frequente é que ao menos parte das mortes seriam evitáveis caso o Governo Federal, sob comando de Jair Bolsonaro, tivesse adotado as medidas necessárias na gestão da pandemia, como a compra em massa de vacinas já no ano passado.
O humorista querido pelo país faleceu no mesmo dia em que o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta deu testemunho da política negacionista de Bolsonaro durante a maior crise sanitária dos últimos 100 anos em depoimento de estreia da CPI da covid-19. A CPI já levantou que o Governo brasileiro recusou pelo menos 11 ofertas formais de fornecimento de vacinas contra essa doença —levando em conta os episódios em que há provas documentais da omissão governamental. Nesses casos, o Ministério da Saúde simplesmente ignorou as ofertas, sem dar resposta aos fornecedores. Nesse pacote estão, por exemplo, 70 milhões de doses do imunizante da Pfizer que poderiam ter sido compradas entre agosto e setembro do ano passado.
“Hipócrita”, “verme”, “canalha”, “maldito”, “desgraçado”, “genocida”, “assassino”. Esses foram alguns dos termos usados por famosos, políticos da oposição e anônimos para responder ao presidente após ele publicar nas redes sociais uma mensagem de condolência pela morte de Paulo Gustavo. “Meus votos de pesar pelo passamento do ator e diretor Paulo Gustavo, que com seu talento e carisma conquistou o carinho de todo Brasil. Que Deus o receba com alegria e conforte o coração de seus familiares e amigos, bem como de todos aqueles vitimados nessa luta contra a covid”, escreveu Bolsonaro.
Em meio aos adjetivos nada elogiosos, surgiam comentários que lembravam muitas das vezes em que o presidente minimizou a gravidade da pandemia, a demora para firmar acordos para a compra de vacinas, as aglomerações que ele promoveu e das quais participou, sua recusa em usar máscaras, a falta de adoção de medidas restritivas e de promoção do distanciamento social, a propaganda da cloroquina como tratamento precoce contra covid-19, mesmo sem eficácia cientificamente comprovada, e uma longa lista de discursos e ações. Na CPI que investiga a gestão da pandemia, Mandetta disse ter a impressão de que o Governo Bolsonaro apostava na teoria da imunidade de rebanho ―que supõe a proteção de uma comunidade quando um percentual da população já tem anticorpos― para superar a pandemia.
O escritor Paulo Coelho, mundialmente reconhecido, foi um dos que, sem citar nomes, responsabilizou diretamente o presidente e seu Governo pela morte de Paulo Gustavo. “Assassinos de Paulo Gustavo: quem dizia ‘é só uma gripezinha’; ‘não passa de 200 mortes’; ‘cloroquina resolve’; ‘gente morre todo dia’; ‘lockdown destrói o país’; ‘máscara nos faz respirar ar viciado’; ‘eu obedeço o comandante’. E por aí vai. Canalhas da pior espécie”, publicou em uma rede social.
Nesta quarta-feira, a jornalista e apresentadora Fátima Bernardes deu voz em seu programa matinal Encontro com Fátima (Rede Globo) à raiva que acompanha a tristeza pela morte do humorista, uma morte que reaviva a dor da perda das outras mais de 400.000 pessoas. “Hoje é um dia de luto pelo Paulo Gustavo, mas também por todos os outros que se foram por conta dessa doença terrível que é a covid-19. E pela forma como essa pandemia vem sendo administrada, infelizmente, aqui no nosso país. Dói muito saber que muitas pessoas, muitas dessas mortes poderiam ter sido evitadas. Cadê a vacina, o respeito ao distanciamento, ao uso de máscara? Cadê uma campanha forte e firme de alerta e informação da população?”, questionou ela. “Nós não estamos só tristes, estamos indignados, nós estamos revoltados. É muito ruim quanto a tristeza e a indignação se misturam à raiva”, acrescentou.
Enquanto a CPI avança no Senado, onde o Governo enfrenta as pressões da oposição, a frustração borbulha nas redes e, em menos de 24 horas, começaram a surgir comentários sobre a organização de protestos na rua contra Bolsonaro. Os administradores do perfil Qual máscara?, uma iniciativa que recompila e distribui informações baseadas em evidências sobre proteção contra a covid-19 e que soma mais de 200.000 seguidores no Instagram e no Twitter, comprometeu-se a distribuir máscaras PFF2 (de alta proteção) para manifestações ao ar livre, a fazer um material informativo para os atos e arrecadar doações para que eles aconteçam.
Nesta mesma quarta-feira, Bolsonaro voltou a menosprezar o uso de máscaras contra a propagação do coronavírus. Durante um ato para falar sobre a inauguração de obras no país, criticou os jornalistas que, segundo ele, “se preocupam apenas em dizer que o presidente está circulando sem máscaras”. “Já encheu o saco isso, pô!”, arrematou.
Fonte:
El País