Ex-ministro detalha em livro os bastidores dos 90 dias na liderança do combate ao coronavírus. Conta das pressões políticas que sofreu do presidente às concessões que fez à frente do Ministério
Cerca de um mês antes de terminar a quarentena laboral que lhe foi imposta após ser demitido do Ministério da Saúde, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta publica um longo depoimento sobre os bastidores políticos dos 90 dias que liderou o combate à crise do novo coronavírus, incluindo detalhes da fritura pública que sofreu diante das divergências com o presidente Jair Bolsonaro. No livro Um paciente chamado Brasil, o ex-ministro traz uma visão interna do funcionamento do Governo Bolsonaro durante a crise. Revela um presidente difícil de ser moderado e mostra como teorias da conspiração (nessa visão, o vírus fazia parte de um plano da China para derrubar governos de direita da América Latina), cálculos eleitoreiros e conflitos com o Palácio do Planalto influenciaram as decisões políticas que culminaram na omissão federal para conter a epidemia no país ― que já soma mais de 145.000 mortos.
Mandetta abre pela primeira vez os números com os quais trabalhava no início da crise: o Ministério da Saúde estimava que o coronavírus poderia matar 180.000 pessoas no Brasil caso não fossem adotadas medidas para frear o contágio. Os números teriam assustado os militares, mas não foram capazes de mudar a postura de Bolsonaro. O ex-ministro diz que tentou apresentar os cenários várias vezes ao presidente, que sempre deixava para depois. “Bolsonaro nunca aceitou sentar comigo para ver a realidade”, afirma. Mas Mandetta garante que o presidente tinha conhecimento da situação catastrófica que se avizinhava. Ele afirma ter apresentado seus números ao ministro general Braga Netto e ao ex-ministro Sergio Moro, alertado o presidente verbalmente várias vezes e chegado a lhe enviar um documento por escrito, como já havia adiantado em entrevista ao EL PAÍS.
A fritura pública
Mandetta narra ter tentado exaustivamente convencer Bolsonaro a mudar sua concepção sobre a pandemia. Usou a imprensa, inclusive, para tentar pressioná-lo. Mas o presidente, segundo conta o ex-ministro, insistia em nutrir-se das teorias conspiratórias, negava a gravidade da doença e se apoiava em soluções “mágicas” de cura com a cloroquina, uma forma de animar a população a quebrar o isolamento social em nome do desenvolvimento econômico, uma pauta cara em disputas presidenciais. Mandetta seguiu defendendo o isolamento e recusou adotar o uso da cloroquina como recomendação oficial do Governo.
O descompasso entre os dois ficou insustentável, com alfinetadas públicas e um longo processo de fritura de Mandetta. Bolsonaro adotava um discurso de que não se poderia cuidar da Saúde em detrimento da Economia. Militares tentavam segurar o médico no cargo, mas o entorno do presidente começava a tratá-lo como opositor. Mandetta conta que o assessor especial da presidência, Arthur Weintraub, chegou a bater a porta na sua cara antes de uma reunião no Planalto. E revela ter ficado receoso quando Bolsonaro visitou a mesma padaria que ele frequenta, provocando aglomeração: “Aquilo foi um recado para me dizer que ele sabia dos meus passos, da minha vida”. Ele temia que vazassem imagens suas no mesmo local para desmoralizá-lo caso fizesse uma crítica aberta ao presidente naquele episódio ― um modus operandi comum atribuído ao chamado “gabinete do ódio”.
Relação com ministro da Economia
Enquanto o suposto dilema entre Saúde e Economia era disseminado para a opinião pública, a relação entre os ministros das pastas que cuidam desses temas ruía. Mandetta retrata no livro um Paulo Guedes egóico, que costumava fazer autoelogios nas reuniões. Conta que o ministro nunca o procurou para saber mais informações sobre a epidemia para poder planejar as ações que amenizassem a repercussão na economia do país. “Paulo Guedes demonstrava profundo desinteresse sobre o assunto”, afirma.
E narra ainda um fervoroso bate-boca entre os dois em uma das reuniões de ministros, quando Mandetta defendia o adiamento da autorização para o reajuste de medicamentos. Sem saber que o valor dos remédios é tabelado no Brasil, Guedes dizia “não admitir” o tabelamento. O tom dos dois estava tão alterado que o vice-presidente Hamilton Mourão precisou intervir com um tapa na mesa para interromper a discussão. Bolsonaro, por sua vez, ouvia tudo calado. Nas reuniões ministeriais, o presidente costumava se manifestar majoritariamente sobre o “inimigo da semana”, relata o ex-ministro.
Traições políticas
O movimento interno para exonerar Mandetta crescia, e um diálogo entre o ministro Onyx Lorenzoni e o ex-ministro Osmar Terra – um negacionista da gravidade da pandemia – na qual tramavam a queda dele vazou na imprensa. Provavelmente por conta disso o ex-ministro da Saúde decidiu revelar só agora uma suposta traição de Lorenzoni, depois de quatro anos de silêncio. Mandetta relata que, em 2016, no auge da Lava Jato, o então deputado gravou uma reunião entre colegas do DEM. Eles discutiam as medidas de combate à corrupção propostas pelos procuradores de Curitiba, relatada por Lorenzoni, e parlamentares queriam amenizar alguns trechos. O ex-deputado revelou a Mandetta que poderia vazá-la e acabou isolado. Só restabeleceu trânsito político após a eleição de Bolsonaro, para quem tinha trabalhado fortemente na campanha.
Tentativa de interferir em cargos chave da Saúde
Foi Onyx, aliás, um nome chave para que Mandetta ocupasse o posto de ministro da Saúde. O então deputado o convidou para conversar com o presidente antes da campanha. Eleito com um discurso de que manteria quadros técnicos em seus ministérios, Bolsonaro teria tentado mudar cargos chave da Saúde antes da crise sanitária, segundo conta seu ex-ministro. Queria exonerar quatro secretários porque não eram “gente nossa”, sob sugestão do filho, Flávio Bolsonaro. “Com o pedido, já vinham quatro novos nomes para substituí-los, todos do Rio de Janeiro e sem qualquer experiência em gestão do SUS”, afirma o ex-ministro. “Quem articulou as exonerações e impôs os novos nomes mirava o controle de mais de 80% do orçamento do Ministério da Saúde”, completa. A solução foi sugerir mais autonomia a hospitais federais do Rio de Janeiro para manter sua equipe, mas ela nunca foi realizada por causa da pandemia.
Mandetta deixou o Ministério da Saúde depois de perder o apoio dos militares. O estopim: uma entrevista dada à Rede Globo na qual criticava Bolsonaro publicamente e verbalizava o enorme descompasso entre o Ministério da Saúde e o Planalto. Em várias passagens do livro, Mandetta deixa claro que media palavras e calculava o peso de suas declarações. Em um dos capítulos, por exemplo, abre o off do conteúdo que vazou a uma jornalista numa tentativa de pressionar por uma mudança na conduta de Bolsonaro diante da crise. Não surtiu efeito. O ex-ministro tem dito que participará das próximas eleições, mas evita cravar uma candidatura ao Planalto. São informações que não devem ser menosprezadas na leitura da obra publicada pela editora Objetiva.
As concessões de Mandetta
No livro, Mandetta atira para todos os lados, com as críticas ao Governo que integrou bastante explícitas. Mas está ausente uma autocrítica mais contundente sobre o seu desempenho no comando das políticas da crise sanitária. Suas ações são justificadas por erros externos ou cálculo político. O ex-ministro, porém, conta algumas concessões que podem soar controversas. Voltou atrás, por exemplo, na suspensão de cruzeiros marítimos (espaço com alto risco de contaminação) após um forte lobby de setores do Turismo, com direito a ligações diretas para Bolsonaro. A decisão ―que ele justifica como estratégia política, tendo decidido esperar um momento mais favorável para implementá-la― desagradou seu secretário de Vigilância em Saúde, Wanderson de Oliveira, que chegou a anunciar que deixaria o cargo. Mandetta não aceitou a demissão, e ele acabou decidindo permanecer no posto.
Em outra ocasião, o ex-ministro admite que orientou os militares sobre como poderiam proceder para despistar a imprensa quando um integrante da comitiva da operação de repatriação dos brasileiros que estavam emWuhan apresentou sintomas de covid-19. O presidente Bolsonaro só decidiu repatriá-los depois que sua negativa repercutiu mal nas redes sociais. Uma equipe de 120 pessoas esteve envolvida na operação ― um “exagero”, nas palavras de Mandetta. Como companhias aéreas se recusaram a transportar os 34 brasileiros diante do risco de contaminação, o Governo usou aviões de reserva da Presidência. Sem orçamento para abastecê-los, o próprio Bolsonaro pagou 739.000 reais de combustível no seu cartão corporativo.
Segundo Mandetta, foi decidido que os repatriados ficariam em quarentena em Anápolis ― embora Florianópolis, a outra opção, representasse maior segurança biológica por estar mais distante da principal base da Força Aérea Brasileira e do centro do poder, Brasília. “Mas pesou a questão do protagonismo, já que os militares poderiam frequentar o local, aparecendo como comandantes da operação”, afirma. Havia ali uma oportunidade de dar uma visão heroica aos militares. A quarentena dos brasileiros contou com uma área comum com direito a cinema (ironicamente, foi exibido o filme Epidemia) e até um pocket show de uma dupla sertaneja, apesar do isolamento visar evitar o contágio de uma doença infecciosa. Sem protocolos estabelecidos, eles decidiram dispensar parte da comitiva da quarentena, e um dos tripulantes apresentou sintomas e deu entrada no hospital do Exército. Sob orientação de Mandetta, o caso foi colocado na lista de suspeitos apenas horas depois, quando os exames já descartavam a infecção.