El País: Governo Bolsonaro prega “negacionismo histórico” sobre a ditadura

Marcos Napolitano, professor da USP, diz que o discurso do Governo Bolsonaro sobre o golpe de 64 está mais para negacionismo, pois “tem um ponto de partida ideológico, com objetivo de ocultar o passado”.
Foto: El País
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Marcos Napolitano, professor da USP, diz que o discurso do Governo Bolsonaro sobre o golpe de 64 está mais para negacionismo, pois “tem um ponto de partida ideológico, com objetivo de ocultar o passado”

Quando Jair Bolsonaro determinou que as Forças Armadas poderiam comemorar os 55 anos do golpe de 31 de março 1964, uma estratégia polêmica de mudar a narrativa sobre como se conta a história ditadura militar brasileiratrouxe à tona discussões antes isoladas ao universo acadêmico. Afinal, a tática seria uma simples revisão para enriquecer o que se sabe até agora sobre a ditadura ou uma negação dos fatos históricos? O ministro da Educação, Ricardo Vélez, deu contribuição ainda mais controversa para a questão. Em entrevista ao jornal Valor Econômico, afirmou que o que ocorreu em 31 de março não foi um golpe, mas “um regime democrático de força”, e que o país deve mudar os livros didáticos para “resgatar uma versão da história mais ampla” sobre o período de 1964 a 1985.

Nesta quinta, a BBC Brasil divulgou que o Governo federal teria enviado um telegrama a Fabian Salvioli, relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Promoção da Verdade, Justiça e Reparação afirmando que “não houve golpe de Estado” e que os anos de governo militar foram necessários para afastar a ameaça comunista. Essa escalada do discurso político para mudar a narrativa sobre o golpe militar, no entanto, não reverbera na historiografia. Segundo Marcos Napolitano, professor da Universidade de São Paulo (USP) e autor de livros sobre história da ditadura militar, falar em um “regime democrático de força” é uma contradição. “Esta mais para negacionismo histórico do que revisionismo”, afirma.

Napolitano explica que o conceito de negacionismo é um tipo de afirmação histórica que não tem base documental, que distorce o processo factual, ou que simplesmente trabalha com documentos falsos, com o objetivo de negar processos que são consensuais. “A diferença é sutil, mas revisionismo está dentro de debate historiográfico, se ancora em métodos aceitos, cria novos objetos de pesquisa, novos problemas, novas questões, fazendo com que o próprio historiador questione suas crenças, o que é saudável”, conta. “Já o negacionismo tem um ponto de partida ideológico, com objetivo de ocultar o passado.”

Pesquisadores que estudam o Holocausto judeu na Segunda Guerra Mundial têm se debruçado sobre a questão. “Há toda uma indústria do negacionismo em torno do Holocausto, apoiada inclusive por alguns historiadores. Mas, no geral, a comunidade historiográfica não aceita, porque o ponto de partida é ocultar o que aconteceu”, explica Napolitano.

O professor afirma que as discussões historiográficas mais recentes já revisaram muitos aspectos da memória sobre a ditadura militar no Brasil. Em seu artigo Recordar é vencer: as dinâmicas e vicissitudes da construção da memória sobre o regime militar brasileiro, Napolitano afirma que “existe uma memória hegemônica, crítica ao regime militar”, construída em concordância entre setores liberais (que até apoiaram o golpe, inicialmente) e movimentos das esquerdas, mas cuja narrativa já passou por correções. Por exemplo, a ênfase na visão da “sociedade vítima” do regime e o golpe como obra exclusiva dos militares. “Novas abordagens vêm problematizando a questão do golpe como ausência de apoio popular. Pois há evidência de apoio, passeatas feitas pela classe média. Por mais que seja incômodo para a memória da esquerda dizer que teve apoio. Mas foi um apoio da classe média, não de grupos populares”, conta.

Outra revisão é sobre a percepção, comum no passado, de que a guerrilha armada no período militar foi reação ao AI-5, o ato institucional que embruteceu o regime. “Não foi. A guerrilha foi um projeto anterior, como reação ao golpe”, afirma Napolitano. De acordo com ele, à medida que novas fontes e documentos vão aparecendo, os historiadores podem confrontar a memória, seja de direita, seja de esquerda. “Esse é o trabalho do historiador. Nosso compromisso é com a ampliação do conhecimento e não com a negação do conhecimento.”

Apesar de afirmar que o revisionismo é saudável, Napolitano afirma, que há limites, uma vez que não se pode negar aspectos fundamentais do fato histórico, como o fato de que a ditadura militar no Brasil matou centenas de pessoas e torturou outras milhares, colocando em xeque os direitos civis no Brasil. “História e memória são coisas paralelas, por isso, um grupo não pode tentar impor sua visão dos fatos no debate historiográfico.”

REVISIONISMO DESEJÁVEL

Napolitano afirma que os processos de revisionismo são frequentemente turbulentos, e muitas vezes, fruto de luta social, como no caso da história indígena e de afrodescentes. “A historiografia assumiu o ponto de vista das vítimas e problematizou as narrativas que vinham do passado.”

Antonia Terra de Calazans Fernandes, professora do departamento de História da USP, que estuda o ensino de história, afirma que foram os movimentos sociais que pressionaram para a mudança narrativa na história indígena e história da África e afrodescendentes. “No século XIX, Varnhagen escreveu a historia do Brasil, descrevendo os indígenas como povos selvagens, que faziam parte da etnografia, pois não teriam futuro. Até a década de 90, quando buscávamos informações sobre o assunto, tínhamos que recorrer a antropólogos, que não discutiam as transformações históricas”, afirma Fernandes.

Situação semelhante acontecia com a história dos afrodescendentes. “Eles sempre estiveram presentes os livros didáticos, mas sempre retratando os negros em situação de escravidão, situações pejorativa do ponto de vista social, sem demonstrar a diversidade”, afirma Fernandes, que ressalta que durante a ditadura militar, o ensino de história foi substituído por estudos sociais.

Apenas com a Lei 10.639/2003, que estabeleceu a obrigatoriedade de incluir no currículo da rede de ensino a temática de história e cultura afro-brasileira e com a lei 11.645/2008, que incluiu a história indígena, que estes temas passaram a ser estudados mais profundamente. “Foi um processo lento, São Paulo só reformulou o currículo na década de 90.

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