Governos do Rio e da Bahia defendem ação que matou Adriano da Nóbrega, que tinha ligação com o senador Flávio Bolsonaro. Acusado poderia ajudar esclarecer execução da vereadora
A morte de Adriano Magalhães da Nóbrega, acusado de ser integrante da milícia carioca Escritório do Crime, foi um desfecho violento de uma ação policial no interior da Bahia ou “queima de arquivo”, como sugere seu advogado? Os responsáveis pela operação das polícias da Bahia e do Rio a defendem —o governador fluminense, Wilson Witzel (PSC), disse que a operação “obteve o resultado que se esperava” enquanto o secretário de Segurança Pública da Bahia, Maurício Barbosa, criticou quem tenta, segundo ele, levar a questão para o “lado político”. Mas o desaparecimento do ex-policial, que tinha laços com o senador Flávio Bolsonaro, pode significar a perda de uma peça importante para ajudar a desvendar o assassinato de Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes, em 2018. A polícia trabalha com a hipótese de que foi obra do Escritório do Crime a operacionalização da morte da vereadora. A esperança agora reside em rastrear a mais de uma dezena de celulares usados por Nóbrega para esclarecer que conexões ele manteve no ano em que esteve foragido. Enquanto isso, o caso de Marielle Franco enfrenta outras zonas cinzentas: a decisão sobre federalizar ou não parte da investigação segue nas mãos do STJ (Superior Tribunal de Justiça).
“Não podemos deixar de agradecer à Polícia Civil do Rio de Janeiro. Ontem [domingo] tivemos duas importantes operações em parceria com outra polícia, a polícia da Bahia, e obteve o resultado que se esperava. Chegamos ao local do crime para prender, mas, infelizmente, o bandido que ali estava não quis se entregar. Trocou tiros com a polícia e infelizmente faleceu”, afirmou Wilson Witzel, um ex-aliado de Jair Bolsonaro. Ao elogiar seus policiais, Witzel disse que a Polícia Civil do Rio “mostrou que está em um outro patamar”, uma referência quase jocosa, já que cita uma frase que virou mote entre torcedores do Flamengo no ano passado.
O secretário de Segurança Pública da Bahia, por sua vez, divulgou vídeo à imprensa. Nele, Maurício Barbosa pediu respeito ao trabalho dos cerca de 70 policiais envolvidos na operação e disse que não há “nenhuma intenção” de esconder crimes cometidos por Adriano e criminosos ligados a ele. “Colocamos a investigação à disposição de quem quer que seja, para refutar o aspecto político que estão querendo dar a uma ação típica de polícia”, afirmou o secretário, que serve ao governador do PT, Rui Costa.
A controvérsia em torno do episódio está longe de acabar. A Corregedoria da PM da Bahia vai investigar as circunstâncias da morte de Adriano Nóbrega, cujo corpo segue no Instituto Médico Legal de Alagoinhas, na Bahia, à espera da família. O Ministério Público baiano, que deu apoio ao promotores do Ministério Público do Rio nas apurações sobre o paradeiro do miliciano, informou, em nota, que vai aguardar o resultado do inquérito da Corregedoria para definir se vai abrir procedimento para investigar a conduta dos policiais.
Sem comentário de Bolsonaro e Moro
Em Brasília, reinou o silêncio. Conhecido por comentar assuntos diversos em suas declarações matinais à imprensa na porta do Palácio da Alvorada ou nas redes sociais, o presidente Bolsonaro, dessa vez, nada falou sobre a morte de um miliciano por policiais. “[Queria] compartilhar com vocês, mas tudo será deturpado. Então lamento, mas não vou conversar com vocês. O dia em que vocês, com todo o respeito, transmitirem a verdade, será muito salutar conversar meia hora com vocês”, disse a um grupo de jornalistas, segundo o jornal Folha de S. Paulo. Ele não respondeu a questionamentos.
Nóbrega, conhecido como capitão Adriano por ter sido oficial da Polícia Militar do Rio, foi morto na madrugada de domingo após uma suposta troca de tiros com policiais do Rio e da Bahia na cidade de Esplanada. Ele estava foragido da Justiça havia um ano e os policiais estavam em seu encalço desde o início do mês, quando quase o prenderam em um condomínio de luxo da Costa do Sauípe (BA).
O acusado tinha vínculos conhecidos com Flávio Bolsonaro. O gabinete do então deputado estadual, investigado pela suposta prática de confiscar parte dos salários dos servidores por meio de um antigo assessor, o ex-PM Fabrício Queiroz, contratou a mãe e a ex-mulher de Nóbrega. Além disso, Flávio Bolsonaro lhe concedeu duas homenagens públicas oficiais enquanto era parlamentar no Rio. A polícia suspeita que o capitão Adriano faça parte de um grupo de sicários vinculados a outros dois ex-policiais que foram acusados pelo assassinato de Marielle e Anderson, Ronnie Lessa e Élcio Vieira de Queiroz, ambos presos. Preso, Nóbrega poderia ajudar a esclarecer dois crimes: a morte de Marielle e Anderson e o suposto esquema de rachadinhas no gabinete de Flávio.
Federalização da investigação e posição de Moro
Enquanto a investigação sobre as pistas deixadas por Nóbrega seguem, outras indefinições rondam um a investigação da execução política mais ousada do país na história recente. O Superior Tribunal de Justiça ainda não definiu qual é a seara adequada para a apuração dos crimes envolvendo o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes.
Se o caso for federalizado, as investigações sairão da responsabilidade da Polícia Civil do Rio de Janeiro, que está sob a alçada do governador Witzel, e passariam para a Polícia Federal, de responsabilidade do Governo Bolsonaro (sem partido). O STJ não colocou o caso em sua pauta do dia 12 de fevereiro. A próxima reunião do colegiado que analisa esse processo ocorrerá em 11 de março, mas ainda não foram definidos quais processos serão analisados pelos magistrados. O processo está com a relatora, Laurita Vaz, que havia feito uma série de questionamentos às partes. As respostas já foram entregues.
Tudo começou porque, em setembro do ano passado, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, usou um instrumento jurídico chamado Incidente de Deslocamento de Competência para pedir a federalização do caso por entender que a polícia local não estava dando o andamento adequado. Dodge acusou diretamente a polícia de estar infiltrada por criminosos. Dois meses depois, seu substituto no cargo, Augusto Aras, reforçou a necessidade de federalização. Contou com o apoio do ministro da Justiça, Sergio Moro.
Um mês após se declarar favorável à federalização, o ministro Moro mudou de ideia. Questionado nesta segunda-feira pelo EL PAÍS sobre qual seria seu entendimento hoje, ele afirmou que retirou seu apoio à transferência de esfera do processo atendendo a um pedido da família de Marielle. Antes, contudo, se queixou das críticas dos familiares da vereadora. “Os familiares de Marielle Franco disseram, por meio de entrevistas, que a federalização serviria para que o Governo federal, de alguma forma, obstruísse as investigações, o que era absolutamente falso. Foi o próprio Governo Federal, com a investigação na Polícia Federal, que possibilitou que a investigação tomasse o rumo correto”, afirmou Moro em nota. A PGR manteve seu pedido de federalização do caso e aguarda a decisão do STJ. A oposição ao Governo Jair Bolsonaro, que antes defendia a federalização do caso, também mudou de ideia e passou a lutar para que o caso ficasse no Rio de Janeiro.