Especialistas alertam que a polarização política preparou o terreno para sites com forte viés ideológico. Esses sites inundaram as redes sociais e podem ser decisivos na disputa pelo voto
As chamadas fake news, as informações falsas ou ao menos distorcidas espalhadas nas redes sociais, se tornaram uma epidemia que percorre o mundo inteiro. Elas fazem parte de uma nova modalidade de guerra informativa, usada com objetivos políticos, que já rendeu grandes benefícios nas últimas eleições dos EUA. O Brasil aparece agora como um perfeito campo de batalha, no qual as fake news, que já estão contaminando o debate político no país há algum tempo, sobretudo desde o processo que acabou no impeachment da presidenta Dilma Rousseff, podem jogar um papel decisivo. Os elementos estão prontos: um pais muito ativo nas redes sociais, com uma forte polarização ideológica que se reflete claramente na Internet e com umas eleições acirradas demais daqui a poucos meses.
No dia 24 de janeiro, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi julgado e condenado em segunda instância a 12 anos e 1 mês de prisão acusado de receber como propina da construtora OAS um triplex no Guarujá, entre outros benefícios. Nesse dia, das 10 notícias sobre política mais compartilhadas no Facebook, nove foram sobre o julgamento, segundo o Monitor do debate político no meio digital. A ferramenta, que “busca mapear, mensurar e analisar o ecossistema de debate político no meio digital”, identificou que uma matéria do site de notícias G1 foi a que mais êxito teve, com 49.000 compartilhamentos. Em segundo lugar estava uma matéria de um site que não tem nada a ver com o jornalismo profissional, Jovens Cristãos, com 36.000 compartilhamentos. No ranking, ainda apareciam outros veículos tradicionais, como Veja e UOL, mas dividindo o espaço com a chamada imprensa alternativa, como Notícias Brasil Online e Falando Verdades.
O exemplo acima descreve bem a guerra informativa travada nas redes sociais: de um lado, meios de comunicação tradicionais que buscam manter sua influência; do outro, sites de notícias chamados de alternativos, com um forte viés ideológico, não raro definidos como sites de fake news (notícias falsas), cavam seu espaço. Mas o que são as fake news, esse fenômeno mundial que influencia a decisão de eleitores? Para o filósofo Pablo Ortellado, que gerencia o Monitor, uma matéria descrita como fake news é aquela que “aparenta ter sido feita a partir de uma apuração, porém ela é falsa não por erro de apuração, mas de maneira maliciosa”.
Diante dessa definição, ele explica, “é muito difícil definir o que são notícias falsas em meio ao volume de notícias nas redes”. Ortellado acredita que o conceito mais adequado para descrever o que está acontecendo hoje no Brasil é “uma guerra de informação travestida de jornalismo”, na qual há uma imprensa dita alternativa ultra engajada disputando o espaço com a grande imprensa, que também está engajada nessa batalha. “Se você olha para os sites maliciosos, eles praticam pouca invenção pura e simples. O grosso da atividade deles é pegar uma matéria da grande imprensa e fazer uma manchete escandalosa, pegar uma especulação e apresentar como verdade…”, explica Ortellado. “São instrumentos de distorção usados com graus variados e que os meios de comunicação também podem usar. Quantas matérias desse tipo as revistas Vejae Istoé já deram na capa? É fake news?”, questiona.
Fábio Malini, coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) e professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), concorda que a imprensa se tornou “a base material para a produção de conteúdo com viés ideológico”. E explica que, apesar do termo fake news ser recente, “as notícias falsas sempre existiram no Brasil e no mundo”, inclusive em época de eleições. A diferença é que hoje “existe um domínio dos veículos com viés ideológico que contam com uma espécie de exercito humano de replicação” de seus conteúdos. E assim, “a opinião vem ganhando mais terreno que a reportagem”.
Nesta última semana, o maior jornal do Brasil, a Folha de S. Paulo, resolveu dar um soco na mesa. Decidiu deixar de publicar matérias em seu perfil no Facebook, alegando, entre outros motivos, que a mudança no algoritmo da plataforma, que passou a privilegiar as interações pessoais, “favorece a criação de bolhas de opiniões e convicções e a propagação das fake news“.
O próprio termo, aliás, passou a ser usado por atores de todos os tipos como forma de desqualificar seu oponente, explica Ortellado. Algo que reflete um momento particular da vida política brasileira: a forte polarização da sociedade. “O Brasil reúne as características que o deixam suscetível a manipulação”, alerta Claire Wardle, jornalista norte-americana que há mais de dois anos está estudando como as notícias falsas se propagam em cada país. “Primeiro porque é um país muito dividido, e não apenas politicamente como também em assuntos culturais e sociais. Em situação assim as pessoas são menos críticas com a informação que encontram. Se alguma coisa reafirma suas crenças, é provável que você acredite e compartilhe. E os brasileiros, que são grandes usuários das redes sociais, adoram compartilhar”. Ortellado resume da seguinte forma a questão: “As fake news não são a doença, e sim o sintoma. A doença é a polarização política. E em época de eleição, com dinheiro jogado nessa polarização, a tendência é piorar. Se em 2014 já foi bem sujo, em 2018 vai ser pior”, aposta.
Mas para Wardle, não é apenas o estado de animo da sociedade que influencia na propagação das fake news, mas também as ferramentas que ela tem nas mãos: “O uso de WhatsApp no Brasil é incrivelmente alto”, diz. “Os aplicativos de mensagens são lugares onde se distribui desinformação e, por estarem criptografados, é mais difícil que jornalistas ou verificadores de informação saibam o que vem circulando. É mais difícil desmentir as notícias falsas a tempo”, acrescenta. Fábio Malini, do Labic, explica que boa parte das informações falsas ou enviesadas de fato são distribuídas através de “correntes de mensagens” que antes eram enviadas por e-mail e agora chegam através do WhatsApp. São correntes que espalham “lendas urbanas” que as pessoas acreditam como “verdades delas”. Até hoje há muitos brasileiros que ainda acreditam, por exemplo, na falsidade de que um dos filhos de Lula é o verdadeiro dono da empresa agropecuária Friboi. Há algumas semanas também fez muito sucesso nas redes o suposto cálculo de que as reduções fiscais dadas pelo Governo Temer às petroleiras dos EUA somariam a mirabolante cifra de 1 trilhão de reais.
Para Ortellado, será nesses sites de noticias engajadas e nos perfis do Facebook ligados a eles onde o jogo político vai acontecer. “Elas não prestam contas, não estão oficialmente fazendo campanha, mas estão ai compartilhando informações em um ecossistema enorme. E ele parece diverso e não é. Os mesmos operadores têm dezenas de páginas. E não adianta você desarmar os sites, você tem que desarmar as pessoas”, argumenta.
Já no Twitter estão sobretudo os robôs, também conhecidos como bots. São programas capazes de mover centenas de perfis nas redes sociais que aparentam ser de pessoas. Mas que, na verdade, existem para disseminar mentiras. “Já sabemos que existe no Brasil, mas o que é mais preocupante é que há brasileiros dispostos a trabalhar como ciborgs, ou seja, a pessoa que atua como bots, passando o dia inteiro compartilhando conteúdo para dar voz a certas mensagens”, explica Wardle. Malini acredita, entretanto, que a influência dos bots tende a diminuir devido à mudança na legislação eleitoral que passou a permitir que políticos paguem para o Facebook impulsar postagens. “Os políticos estão percebendo que o objetivo da compra desses programas, que era ser a tendência, já pode hoje ser conseguido com o impulsionamento de postagens que podem dar visibilidade a sua candidatura”, argumenta. De todas as formas, ele diz que um dos efeitos colaterais dos bots vem sendo “o aumento da toxicidade das redes sociais, a sensação de ser um lugar que gera um nível de restrição ao pensamento muito grande”.
Wardle é diretora executiva da First Draft News, um projeto da Universidade de Harvard especializado em buscar estratégias para combater as fake news. Em alguns países, conseguiu o milagre de unir varias jornais diferentes, antes inimigos, em um esforço conjunto para verificar e desmentir rumores. Na França funcionou, assim como na Alemanha e no Reino Unido. Agora tenta fazer o mesmo com os principais jornais no Brasil, o EL PAÍS entre eles.
Em sua opinião, os brasileiros deveriam estar preocupados. “Não é só porque existam sites desenhados para fazer notícias ilegítimas, é que existem redes de bots, amplificação pré-fabricada, tentativas de manipular jornalistas para que escrevam matarias baseadas em hashtags cuja relevância foi inflada, fotos manipuladas, vídeos inventados, textos micro-desenhados para eleitores… Os brasileiros deveriam estar preocupados e deveriam perceber o importante que é não compartilhar informação falsa em seus perfis”. Com a mente em outubro, data das eleições, acrescenta: “As eleições deveriam consistir em eleitores que tomam decisões com informação checada. Caso contrário, a democracia está em perigo”.