Candidatos à direita e à esquerda que se preocuparam com aflições concretas do eleitor como saúde, educação e emprego foram eleitos ou tiveram bons resultados, mostram urnas e analistas
Aiuri Rebello, El País
Apurados os votos do segundo turno das eleições municipais e definidas as posições dos jogadores nessa rodada do xadrez político, uma coisa ficou clara: o grande vencedor foi a pauta social. Em meio a uma crise econômica que já dura seis anos com poucos refrescos e a maior pandemia em mais de um século com a covid-19, sem nenhuma solução concreta à vista para os dois problemas e seus desdobramentos, o eleitor brasileiro depositou seu voto naqueles que conseguiram sinalizar saídas ou mostrar realizações em áreas como saúde, educação e emprego. Candidatos à esquerda e à direita que deixaram essa temática evidente durante o processo eleitoral foram eleitos ou obtiveram resultados politicamente importantes, apesar da derrota.
Na contramão, os que ignoraram esses assuntos e tentaram fazer neste ano uma reedição de 2018 —surfando no apoio do presidente Jair Bolsonaro e focados em questões de costumes e segurança pública— encontraram problemas para se eleger e foram derrotados na maioria dos casos e nas principais cidades do país. É o que mostram os resultados das urnas e a análise de especialistas ouvidos pelo EL PAÍS.
Reeleito em São Paulo com 59% dos votos válidos, Bruno Covas mostrou-se sintonizado com o humor do eleitorado e buscou afastar a imagem de direita deixada pela administração que herdou do governador João Doria em 2018. Para isso, contou com as ações de combate à pandemia como a criação de hospitais de campanha que funcionaram, e escondeu o padrinho durante toda a campanha, focando seu discurso em questões sociais. “Vamos construir o consenso, é momento de diálogo e união”, declarou Covas após a vitória. “Temos que combater as desigualdades, temos que combater o coronavírus, investir em saúde e educação, e fazer da nossa gestão um mantra na busca de emprego e oportunidades”, completou.
As eleições, de um modo geral, mostraram que a expectativa do eleitor mudou. “É muito diferente do humor eleitoral que a gente tinha em 2018, muito diferente, que por sua vez já estava colocado nas eleições municipais de 2016”, afirma o cientista político Fernando Abrucio, professor da Fundação Getulio Vargas. “Em 2018 não se discutiram questões sociais no país. E não é só uma questão da esquerda. Se você pegar a campanha do Boulos e do Covas, são muito parecidas nesse sentido”, diz. Abrucio fez uma análise da campanha de Covas, e diz que mais de 80% do tempo de TV foi dedicado a questões sociais. “Na campanha de 2016, o Doria falou menos da metade em questões sociais. Era o gerente, antipetismo e isso aí”, afirma.
O filósofo e analista político Roberto Romano, professor aposentado da Unicamp, concorda. “Me parece que levou vantagem neste ano aqueles que mostraram mais preocupação com os fatos da vida cotidiana das pessoas”, diz ele, que vê também um reequilíbrio das forças políticas em uma configuração mais estável do que a vista em 2018. “Foi uma reconfiguração do sistema político pós Operação Lava Jato”, afirma o cientista político Vinícius do Valle. “A direita teve de se reposicionar mais ao centro e se afastar do extremo. Essa centro-direta ganhou espaço e vai disputar votos com uma esquerda que passa por um processo de renovação e está mais plural.”
Derrotado na capital paulista, Guilherme Boulos, do PSOL, conseguiu mais de 2 milhões de votos e sair maior do que entrou dessa eleição. Desponta como uma das novas lideranças da esquerda brasileira e um nome importante para a composição de forças para as eleições de 2022. “Não foi dessa vez, mas a gente vai vencer”, disse o candidato oriundo do MTST, movimento social de luta por moradia. Por outro lado, o candidato que apostou no apoio do presidente Jair Bolsonaro como grande diferencial de sua campanha naufragou já no primeiro turno. Celso Russomanno, do Republicanos, obteve 10% dos votos.
Dentre as maiores capitais do país, os candidatos bolsonaristas não conquistaram nenhuma vitória. Vencedor no segundo turno do Rio de Janeiro com 64% dos votos válidos contra o candidato do presidente Bolsonaro e prefeito em busca de reeleição Marcelo Crivella (Republicanos), Eduardo Paes, do DEM, foi quem deu o tom e largada para a disputa de 2022. “Esse governo que acaba foi ruim na gestão, piorou a vida das pessoas e fez mal a tanta gente”, afirmou ao lado do correligionário e presidente da Câmara, Rodrigo Maia. “Esse clima de raiva, de muito ódio não fez bem ao Brasil e nem aos cariocas, vamos mudar isso daqui pra frente.”
“Não só no segundo turno, mas nas principais cidades do país o que vemos é uma derrota muito forte do bolsonarismo”, avalia Abrucio. “Ele teve derrotas muito claras em campanhas nas quais se envolveu, mas não é só isso. O discurso dos vencedores anuncia já um clima de opinião muito diferente do clima de 2018. A eleição municipal é importante não para dizer quem vai ganhar a eleição presidencial, mas para vermos o humor, os assuntos, o clima de opinião”, diz.
O cientista político observa que em Fortaleza o candidato do bolsonarismo até tentou mudar o discurso, chegou a melhorar a performance, mas não foi bem-sucedido. “Ele veio na vaga da segurança pública e tal, tentou mudar a lógica do discurso e começou a falar que o grande problema de segurança era uma questão social e não de polícia tentando desgrudar sua imagem da do presidente de qualquer forma”, diz Abrucio. A estratégia não funcionou e Sarto Nogueira, candidato do PDT e de Ciro Gomes, venceu Capitão Wagner, do PROS, com 51% dos votos válidos.
Abrucio aponta que em Goiânia o senador Vanderlan Cardoso, do PSD, começou a apresentar queda acentuada nas pesquisas de intenções de voto conforme abraçou a pauta bolsonarista e passou a defender na campanha o presidente e seu Governo. Mesmo intubado na UTI com covid-19, Maguito Vilela, do MDB, ganhou no segundo turno com 52% dos votos válidos.
Em Belém, Edmilson Rodrigues (PSOL) venceu o segundo turno com 51,76% dos votos válidos. O candidato do PSOL venceu Everaldo Eguchi (Patriota), um ex-delegado da PF que faz discurso anti-corrupção na capital do Pará, seguindo a fórmula lavajatista que funcionou em 2018, mas perdeu o brilho em 2020. A disputa foi acirrada, mas pesquisas recentes já mostravam Edmilson Rodrigues à frente.
Já em Porto Alegre, Sebastião Melo, do MDB, venceu Manuela D’Ávila (PCdoB) com 54% dos votos válidos e, também, um discurso de foco na saúde, emprego e educação. Na capital gaúcha, porém, a vinculação, errônea, de Manuela à extrema esquerda teve algum peso na reta final, o que mostra ainda um recall dos últimos pleitos. Para o cientista político Rudá Ricci, trata-se de uma eleição “de transição”, escreveu ele no Twitter. “A marola do antissistema de extrema direita e apolítico acabou. O eleitor cravou no conhecido e tradicional. Nessa, o centro-direita levou a melhor”, concluiu.
Do Valle faz a mesma leitura. “A centro-direita é a principal vencedora porque conseguiu se descolar da imagem do Bolsonaro e se colocar como uma força política em si, apesar de ainda não ter um nome muito forte ou definido. Virou um desafio para o presidente”, diz do Valle. “O bolsonarismo vai ter que buscar uma forma de juntar forças e agora enfrentar esses dois polos. A centro-direita e essa esquerda que renasce das cinzas ainda de uma forma bem plural e comanda capitais importantes fora da sombra do PT.”
O resultado das eleições já apontam as diretrizes para a eleição presidencial dentro de dois anos. “O grande tema para 2022 é a questão social no país. E isso é o contrário do bolsonarismo”, afirma Abrucio. “E ainda tem a mudança de humor no cenário externo, com a eleição de Joe Biden e que ainda não foi sentida por aqui”, diz ele. “A União Europeia agora vai atacar fortemente isso e a China e os EUA também. Vai juntar os três para pressionar o Brasil. A gente começa a perceber que existe uma mudança externa, a pandemia, o resultado das eleições municipais… isso tudo indica que aquela agenda e clima polarizado de opinião que imperou em 2018 acabou, já era”, afirma. Para Roberto Romano, o bolsonarismo sai menor, sem dúvida. “Ele vai chegar em 2022 em uma situação difícil, e até lá vamos sofrer muito com ele.”
Se o bolsonarismo perdeu espaço nestes eleições, a situação não ficou melhor para o PT. O partido do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva não ganhou em nenhuma capital. Foi o pior resultado na história da sigla desde 1985. No segundo turno em Vitória e no Recife, era em Pernambuco que a sigla tinha mais chance de manter pelo menos um bastião entre as capitais brasileiras, mas não deu. João Campos, do PSB, bateu Marília Arraes com 56% dos votos válidos.