Wuhan ou Madri pouco servem de modelo para as 30 milhões pessoas que não têm saneamento e, por isso, não conseguem seguir a recomendação mais básica para se evitar o contágio
Naiara Galarraga Cortázar, do El País
As autoridades e a população do Brasil podem ter alguma ideia do que virá com a expansão do coronavírus em uma megalópole como São Paulo, porque estão algumas semanas atrás de Wuhan ou de Madri. Mas, juntamente com as infinitas incertezas da crise, o país enfrenta a ameaça “com um agravante: não existe modelo de como o vírus se espalha pelas favelas”, alertou na semana passada o biólogo e divulgador Atila Iamarino.
Para os 30 milhões de brasileiros que não têm saneamento básico ou os 11 milhões que vivem em milhares de favelas espalhadas por um território com o dobro do tamanho da União Europeia, é difícil seguir a recomendação sanitária mais simples —lavar as mãos frequentemente com água e sabão— e o álcool em gel é um luxo inalcançável. E trabalhar em casa é uma quimera para famílias que dividem um ou dois quartos mal ventilados ou quando alimentar os filhos exige sair às ruas para vender doces ou cuidar de bebês ou dos jardins de outros.
Casos já foram confirmados em comunidades do Rio de Janeiro, enquanto o avanço da pandemia ganha velocidade. Até a tarde deste sábado, o total oficial no país era de 432 mortos e 10.278 infectados.
Nessas comunidades superpovoadas onde poucos confiam nas autoridades, o Estado só aparece com uniforme policial, faltam as infraestruturas mais básicas e as pessoas vivem com o que ganham no dia, combater o coronavírus é uma missão muito delicada que preocupa os governantes e na qual a sociedade civil pôs mãos à obra em uma tentativa de evitar a catástrofe.
“A crise já está nos afetando de forma muito violenta e sabemos que aqui vai contagiar muita gente”, explica por telefone Gilson Rodrigues, presidente da União de Moradores e do Comércio de Paraisópolis. Ele conta que, embora tenha demorado vários dias, o vibrante comércio dessa favela de 100.000 habitantes em São Paulo já está fechado, cumprindo as medidas de isolamento social recomendadas pelo Ministério de Saúde e pelo Governo estadual. São medidas drásticas, alinhadas com as diretrizes da OMS para enfrentar o perigo para a saúde, que o presidente Jair Bolsonaro considera exageradas devido a seus efeitos brutais na economia, porque “a fome mata mais que o vírus”.
Convencer os moradores a reduzir o contato com outras pessoas para frear os contágios não foi fácil, porque em Paraisópolis “alguns não acreditam que o vírus vá chegar, e outros não acreditam que vá ser tão violento”, diz Rodrigues. Cosme Filipsen, que vive na favela do Morro da Providência, no Rio, conta por telefone que, até poucos dias atrás, uma boa parte de seus moradores ainda se reunia para um churrasco e uma cerveja.
Essa incredulidade popular não é de surpreender se levarmos em conta que Bolsonaro encabeça aqueles que consideraram a Covid-19 uma “gripezinha” e continua incentivando a população a retomar completamente a atividade econômica, contrariando o critério do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. O ministro, que é médico, alerta que enquanto não houver vacina nem um número suficiente de leitos hospitalares suficientes, respiradores e máscaras, o mais eficaz é ficar em casa. “Além de ser ineficaz diante da pandemia, Bolsonaro coloca todos nós em perigo”, insiste Filipsen.
O vírus, que parece ter chegado à América Latina com um empresário brasileiro que voltou de Milão, avança em um país onde a grande desigualdade social complica ainda mais a batalha. Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz, uma das instituições brasileiras de referência em pesquisa na área da saúde pública, explicou em uma entrevista recente que a Covid-19 “chega de classe executiva, mas se depara com uma realidade em que nós temos uma alta densidade populacional e em condições habitacionais de muitas vulnerabilidades, como é o caso de muitas das nossas periferias e favelas em todos os centros urbanos do Brasil. Além disso, temos uma mobilidade urbana difícil, com transportes lotados”.
O carioca Filipsen conta que seus recentes protestos nas redes sociais contra a falta de água em sua comunidade repercutiram na mídia e finalmente foi restabelecido o abastecimento na área, que “estava sem água desde três meses antes da pandemia”.
À intranquilidade pela falta de saneamento básico —“desprezado pelos políticos porque não aparece nas campanhas eleitorais”, diz o líder dos moradores de Paraisópolis— soma-se uma preocupação ainda mais urgente, o desastre econômico: os comerciantes perderam sua renda com o fechamento das lojas, e muitos porteiros ou babás que trabalhavam nos bairros de classe média alta “foram despedidos ou colocados em férias não remuneradas”.
Como as ajudas econômicas diretas anunciadas pelo Governo federal e por administrações estaduais e municipais ainda não se materializam nos bolsos dos brasileiros, as associações de moradores de inúmeras comunidades buscaram aliados para distribuir alimentos aos mais necessitados, além de informar as pessoas sobre a magnitude dos riscos e como evitá-los. Em Paraisópolis, estão até erguendo uma espécie de hospital de campanha.