Grupo de juristas, intelectuais, jornalistas e ativistas, incluindo seis ex-ministros, criou um observatório de violações homenageando Dom Paulo Evaristo Arns
Preocupado com o crescimento do discurso de ódio e os crescentes ataques aos direitos humanos, especialmente após a eleição de Jair Bolsonaro, um grupo de juristas, intelectuais, jornalistas e ativistas criou a Comissão Arns, lançada oficialmente na última quarta-feira, 20, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP), em São Paulo.
Divulgado antecipadamente para um pequeno grupo de jornalistas na terça-feira, 19, em reunião na PUC (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), o manifesto da Comissão assinala que a importância daqueles que militam e defendem os direitos humanos já pode ser observada em outros momentos históricos do país. “O desrespeito aos direitos humanos, cuja incidência pode crescer graças às características do processo político recente, atinge de maneira cruel os setores mais discriminados da população, com suas características de vulnerabilidade econômica, social, de raça, religiosa, de orientação sexual e de gênero”, diz o texto, já disponível no site da comissão, presidida pelo ex-ministro Paulo Sérgio Pinheiro.
Nessa reunião estiveram presentes três membros da comissão, que, por decisão, tem 20 integrantes, além de redes de apoiadores: a jornalista Laura Greenhalgh, o ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira e a cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida.
O ex-ministro da Fazenda de José Sarney, ex-secretário de governo de Franco Montoro e ex-ministro da administração Federal e Reforma do Estado de FHC, Luiz Carlos Bresser-Pereira, explica que a ideia da comissão surgiu logo após a eleição e Bolsonaro, em outubro do ano passado. “Os direitos humanos voltaram a ser profundamente ameaçados com essa eleição. Curiosamente, o que a gente tem que se valer é das instituições brasileiras que nem sempre serão aquilo que a gente gostaria. O MP nesse momento, por exemplo, é uma coisa importante. Nós montamos a comissão e convidamos a Margarida Genevois como presidenta de honra [Socióloga, foi presidente da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo por três mandatos, atuando diretamente com Dom Paulo Evaristo Arns]”, explicou.
Bresser destaca que a comissão não teria condições materiais de acompanhar todas as violações – que são muitas – que vem acontecendo. Por isso, vão eleger casos emblemáticos para realizar acompanhamento. Isso inclui posicionamentos públicos da comissão e até encaminhamentos práticos. “Nós não vamos resolver problemas e queixas específicas de cidadãos. Eu resumiria dizendo que nossa comissão será de oferta e não de demanda, usando uma linguagem de economia”, afirmou o ex-ministro.
A jornalista Laura Greenhalgh fez questão de salientar o teor suprapartidário da comissão. “É importante dizer que não somos um grupo anti-bolsonaro. Até porque a questão dos direitos humanos no Brasil ela transcende, ela vai além dessa conjuntura de poder que se instalou no país. Quer dizer, o Brasil vem em um processo interessante de consolidação de acordos, de pactos, de convenções importantes, o Brasil tem sido signatário de todos esses documentos, mas sabemos ao mesmo tempo que na vida real temos ainda que caminhar muito para consolidação desses direitos. Hoje estamos vendo diariamente violações sendo cometidas contra grupos discriminados. Não são nem vulneráveis, são discriminados mesmo. Falo dos indígenas, dos negros, das mulheres, dos jovens negros que estão sendo abatidos de maneira inaceitável nas periferias das cidades”, argumentou Laura.
“A agenda é muito grande. Então esperamos que com a participação de figuras como o Bresser e outros ministros que a gente possa somar forças e mobilizar essa situação no país. As coisas tendem a piorar pelos dados e acontecimentos de todos os dias. Não são bons os sinais e essa comissão chega nessa hora”, apontou. Laura citou também a importância de veículos contra hegemônicos que podem ter capilaridade e possibilidade de trazer uma outra narrativa sobre essas violações.
Bresser-Pereira destacou a preocupação com a diversidade no quadro da comissão e a rejeição total à participação de políticos com mandato. “Quando a gente fala nessa comissão, ela está fundamentalmente preocupada com os direitos civis. Há direitos sociais e direitos políticos, que nada mais é que a democracia. Os direitos civis são os direitos mais básicos e mais antigos, que foram desenvolvidos lá no século 18. É o direito a liberdade, ao respeito, e são esses direitos que tem sido atacados se analisarmos estruturalmente”, afirma o ex-ministro.
Para ele, o embrião do discurso de ódio começou após as jornadas de junho de 2013 – protestos de rua contra aumento da passagem do transporte público que tomou proporções enormes em todo o país -, cresceu nos “panelaços” ocorridos após a eleição de Dilma Roussef e atingiu seu ápice com o impeachment. “Eu percebi que havia se formado no Brasil uma hegemonia ideológica neoliberal muito grande”, explicou Bresser-Pereira. “Não acredito em centro. Ou você é de centro-esquerda ou de centro-direita. E acho urgente que esses dois campos encontrem alguma forma de diálogo. A ideia de não radicalizar nesses momentos é muito importante. Radicalização agora não permitirá restabelecer a sanidade”, apontou.
A cientista política Maria Hermínia Tavares de Almeida explica que haverá interesse especial em acompanhar casos em que haja o fator morte. “Nosso foco são as graves violações e segundo até a definição de direitos humanos que envolvem responsabilidade do Estado, certo? Pode, claro, acontecer por um agente privado. Mas como diz Paulo Vanucchi, a definição de direitos humanos passa pela responsabilidade de Estado. A violação acontece quando Estado pratica ou se omite”, afirmou. Um desses exemplos é a chacina do Morro do Fallet, no Rio de Janeiro, que terminou com 15 mortos. Os integrantes da comissão também demonstraram preocupação com direcionamentos institucionais e públicos de autoridades que chancelam, no discurso, essas violações. Os dois casos considerados gritantes foram o do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, e do governador de São Paulo, João Dória, que têm feito declarações elogiosas a ações letais das respectivas polícias.
Confira manifesto completo:
A história brasileira é marcada por graves violações dos direitos humanos mais fundamentais. Apesar dessa violência nunca ter sido objeto da devida atenção por parte do país, houve inegáveis avanços sob a égide da Constituição de 1988. Não podemos permitir, agora, que ocorram retrocessos.
O desrespeito aos direitos humanos, cuja incidência pode crescer graças às características do processo político recente, atinge de maneira cruel os setores mais discriminados da população, com suas características de vulnerabilidade econômica, social, de raça, religiosa, de orientação sexual e de gênero.
Em outros momentos difíceis, o Brasil percebeu a importância dos organismos de defesa de direitos humanos compostos de forma plural por membros da sociedade civil. Tais entidades demonstraram, mesmo em conjunturas dramáticas, a vigilância necessária para dar visibilidade e processamento jurídico a crimes cometidos por agentes do Estado.
A instauração da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos D. Paulo Evaristo Arns – Comissão Arns quer ajudar na proteção da integridade física, da liberdade e da dignidade humana dos que possam estar ameaçados neste novo período duro da história brasileira.
Com a presença de participantes de entidades anteriores, pretendemos recolher a experiência do passado com vistas a preservar o futuro. Este o motivo, também, de homenagear o Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns (1921 – 2016) que, acima de diferenças religiosas, políticas, sociais e ideológicas, foi capaz de juntar forças variadas em favor dos direitos humanos na hora mais difícil do regime ditatorial instaurado em 1964.
A partir da reunião de velhos e novos defensores da dignidade humana, o objetivo da Comissão Arns será o de contribuir para dar visibilidade e seguimento jurídico, em instâncias nacionais e internacionais, a casos de graves violações dos direitos humanos. A comissão vem para trabalhar de forma articulada com os inúmeros organismos de defesa e pesquisa em direitos humanos já existentes no Brasil.
A unidade plural de todos os que sustentam a inviolabilidade dos direitos humanos, no quadro dos tratados e convenções internacionais que o Estado brasileiro se obrigou a respeitar, é o nosso norte e fundamento comum.