Enquanto ataca Corte, presidente se aproxima do Congresso e oferece vaga no Supremo ao PGR, que o investiga. “É a interpretação de quem conspira contra a democracia”, diz Oscar Vilhena
Afonso Benites e Carla Jiménez, do El País
Em conflito aberto com o Supremo Tribunal Federal e diante de inquéritos que acossam a ele e parte de seus mais fieis militantes, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) invocou por meio de suas redes sociais uma “intervenção militar pontual”, ou seja, um golpe contra outros poderes constituídos. Na tarde desta quinta-feira, quando em suas contas no Twitter e no Facebook, o mandatário compartilhou uma entrevista concedida pelo advogado constitucionalista Ives Gandra Martins, na qual ele defendeu que o artigo 142 da Constituição permite uma intervenção das Forças Armadas em outros poderes para a garantia da lei e da ordem. “Live com Ives Gandra: A politização no STF e a aplicação pontual da 142”, escreveu o presidente.
Nessa entrevista, o advogado disse que, em casos extremos, quando começasse a haver um choque entre poderes, os militares exerceriam um “poder moderador” e interviriam em outra instituição. “Caso contrário, o que teríamos seria um superpoder. Existe um poder máximo que é Supremo, o Judiciário, e existem poderes menores, subpoderes, que seriam o Legislativo e o Executivo. E cada vez que houvesse um conflito, mesmo que parte do conflito fosse o poder Judiciário, seria o próprio poder Judiciário era quem decidiria em causa própria”.
O EL PAÍS consultou dez juristas, três deles que preferiram não ter seus nomes revelados pelos cargos que ocupam, e todos afirmaram, unânimes, que não há a figura de “intervenção militar” que não seja um golpe. Parte deles opina, inclusive, que o presidente, que já havia participado de manifestações golpistas, incorreu no crime de incitar um golpe de Estado.
Pela manhã, Bolsonaro, que usava uma gravata azul com desenhos de pequenos fuzis enfileirados, já havia demonstrado inconformismo com uma decisão de quarta-feira do ministro Alexandre de Moraes, da Suprema Corte, no âmbito do polêmico inquérito das fake news. Era uma ordem de apreensão de computadores, celulares e tablets de 29 bolsonaristas, além da quebra de sigilos bancário e fiscal de quatro deles, parte da apuração sobre uma rede de disseminação de boatos contra o STF. “Ontem foi o último dia. Eu peço a Deus que ilumine as poucas pessoas que ousam se julgar melhor e mais poderosos que os outros que se coloquem no seu devido lugar, que nós respeitamos”, disse. E seguiu exaltado: “Não podemos falar em democracia sem um Judiciário independente, sem um Legislativo independente, para que possam tomar decisões não monocraticamente, por vezes, mas as questões que interessam ao povo que tomem, de modo que seja ouvido o colegiado. Acabou, porra”.
Em entrevista à rádio Bandeirantes, o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, opinou na mesma linha. “Vou me valer de novo das palavras de Ives Gandra Martins: o poder moderador para restabelecer a harmonia entre os Poderes não é o STF, são as Forças Armadas (…) Eles [militares] vêm, põem um pano quente, zeram o jogo e, depois, volta o jogo democrático. É simplesmente isso”.
Todos os discursos ocorrem seis dias depois de o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, emitir uma nota à República para advertir das consequências “imprevisíveis” para a “estabilidade nacional” caso o Supremo decidisse requisitar o celular do presidente no curso de uma investigação contra o presidente —há um pedido em análise na Procuradoria-Geral da República. A nota foi endossada pelo Ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, num inusual participação do chefe das Forças Armadas em questões de política interna.
O presidente “conspira contra a democracia”
Para Oscar Vilhena, professor da FGV Direito em São Paulo, Bolsonaro e seu clã, ao invocar o artigo 142 da Carta, usam a “interpretação de quem conspira contra a democracia e não é capaz de interpretar um artigo dentro do quadro geral da Constituição”. “Trata-se de uma interpretação enviesada de que seriam as Forças Armadas, e não o Supremo, que têm a última palavra sobre a defesa da Constituição”, diz Vilhena.
“Ele está claramente incitando golpe, ele e o filho [Eduardo]”, disse o advogado especializado em direito público Marco Aurélio de Carvalho. A mesma opinião tem Cezar Britto, ex-presidente da Ordem dos Advogados do Brasil e membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz. “Em nenhuma hipótese as Forças Armadas podem atuar a pedido dos poderes. Elas podem atuar para garantir a democracia, mas nunca contra a democracia”.
O advogado constitucionalista Guilherme Amorim Campos da Silva concorda que “não existe intervenção militar constitucional, como tem pregado o presidente”. Ele acredita que o mandatário está incorrendo em crime de responsabilidade ao quebrar o juramento de defender a Constituição. “As Forças Armadas entram em ação a pedido de algum dos poderes constituídos, para garantir a institucionalidade do país, e não para atuar como força autônoma ou soberana sobre os demais”.
Na opinião do criminalista José Carlos Abissamra Filho, diretor do Instituto em Defesa do Direito de Defesa, o presidente tem ficado sozinho politicamente e vem tentando se vincular à instituições que gozam de prestígio social, como Polícia Federal e Forças Armadas. “Ele vem pedindo esse apoio das Forças Armadas há algumas semanas já. Essa é mais uma tentativa. Está esperando para ver se as Forças Armadas vão dar. Eu não vejo clima para que isso ocorra”.
O constitucionalista Erick Pereira segue na mesma linha. Para ele, Bolsonaro faz um discurso “intimidador, mas inexequível”. “Não tem espaço constitucional para isso. Apenas se for ato de violência ditatorial e este não precisa da Constituição”. Outro especialista em direito público, Cristiano Vilela diz que o presidente tem andado no limite da incitação a um golpe. “Ele tem feito isso regularmente. Tem dado declarações que deixam a entender, mas sem dizer literalmente”.
Supremo e promessa a Aras
A aposta de Bolsonaro na tensão máxima com o Supremo acontece em meio à expectativa de que o plenário da Corte julgue, na próxima semana, a legalidade do inquérito das fake news, instaurado pelo próprio tribunal e objeto de debate no mundo jurídico. O relator do caso, Edson Fachin, pediu celeridade nessa análise, já que o procurador-geral, Augusto Aras, pediu a sua suspensão na quarta-feira. No ano passado, Aras, indicado por Bolsonaro, entendia que a apuração era legítima, agora, mudou de ideia.
Aras é uma figura central no xadrez político-jurídico não só por causa desta atuação no inquérito relatado por Moraes, mas também porque é ele quem decidirá se Bolsonaro deve ou não ser denunciado por suposta interferência na Polícia Federal. Depois de visitá-lo pessoalmente nesta semana, Bolsonaro resolveu, nesta quinta, oferecer a ele, em público, uma possível vaga no Supremo Tribunal Federal.
Em sua tradicional live de quinta-feira no Facebook, na qual abriu espaço para comentaristas da rádio Jovem Pan lhe fazerem perguntas, Bolsonaro teceu elogios a Aras. O mandatário disse que o procurador está fazendo um excelente trabalho, principalmente na área econômica e que, se ele pudesse indicar um terceiro ministro para o STF, o nome seria o de Aras. “Se aparecer uma terceira vaga, espero que ninguém ali desapareça, o Augusto Aras entra fortemente para essa vaga aí”. Até 2022 estão previstas duas aposentadorias de ministros da Corte a de Celso de Mello em novembro deste ano e a de Marco Aurélio Mello, em 2021.
Enquanto atacava na redes sociais o Supremo por um lado, por outro, o presidente recebia o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que tenta atuar como bombeiro na crise. Em um relato feito a senadores, Alcolumbre disse seu objetivo é pedir calma ao presidente enquanto o país enfrenta a pandemia de coronavírus.
O gesto do presidente do Senado é importante porque a estratégia de Bolsonaro parece ser por água na fervura do conflito, mas sem perder a retaguarda no Congresso. Para tanto, tem forjado aliança com o Centrão, grupo de partidos de direita que aceitou apoiá-lo em troca de cargos e acesso a fundos públicos, e com parte da cúpula do Parlamento. Com os acordos já feitos, em tese, Bolsonaro consegue evitar o andamento de processos de impeachment ou de denúncias criminais na Câmara – já que as legendas do Centrão somam cerca de 200 deputados, 28 a mais do que o mínimo necessário para barrar os intentos. “Atendemos, sim, alguns interesses desses partidos”, disse o presidente sobre o Centrão nesta quinta-feira. Na campanha eleitoral, era comum ouvir do então candidato e de seus aliados mais próximos a afirmação de que o mal do Brasil estava nesse grupo partidário, que representava “a velha política”.
Por causa desta blindagem no Congresso, a oposição usa todas as armas jurídicas disponíveis contra o Planalto e ministros diz que a expectativa é que qualquer atitude contra o Governo venha ou do Supremo ou uma mobilização da sociedade no segundo semestre. “A panela de pressão vai estourar depois de julho, quando a economia degringolar por causa da pandemia”, ponderou o líder da minoria na Câmara, José Guimarães (PT-CE).