O presidente inicia seu Governo atentando contra os direitos e as terras das comunidades
Podemos tirar duas lições importantes dos primeiros 100 dias de presidência de Bolsonaro. A primeira é que todos os temores eram bem fundamentados, e esta administração racista está lançando abertamente um ataque sem precedentes contra os povos indígenas do Brasil, com o objetivo explicito de destruí-los como povos, assimilando-os pela força e saqueando suas terras.
A segunda é que ainda há uma esperança de que esse ataque genocida possa ser detido. As instituições, os tribunais e o Congresso do Brasil podem proporcionar amparo legal e prático se tiverem vontade. E os próprios povos indígenas estão se organizando e mobilizando contra esse ataque em escala local e nacional, tendo obtido notáveis vitórias.
No início do ano, a Survival International apoiou a maior manifestação mundial já feita pelos direitos dos povos indígenas. Levantaram-se vozes e cartazes em todo planeta em solidariedade às comunidades do Brasil, que por sua vez realizaram dezenas de manifestações.
Sonia Guajajara, líder indígena e candidata à vice-presidência nas eleições de 2018, afirmou: “Vamos resistir. Se formos os primeiros a ser atacados, seremos os primeiros a reagir.” E Rosinele Guajajara disse: “Resistimos durante 519 anos. Não cederemos agora. Uniremos todas as nossas forças e venceremos.”
Não se pode subestimar a importância, tanto simbólica como prática, de lutar junto aos povos indígenas e tribais. Além de prestar um apoio significativo às pessoas envolvidas nos protestos, os legisladores brasileiros, juízes, prefeitos, congressistas e outros que não são acólitos de Bolsonaro não podem ignorar as vozes levantadas no mundo inteiro ante as injustiças ocorridas diante de seus olhos.
Em seu primeiro dia no cargo, Bolsonaro transferiu a responsabilidade pela demarcação e regulação dos territórios indígenas da Fundação Nacional do Índio (Funai) para o Ministério da Agricultura. Essa manobra teve a clara intenção de impedir qualquer proteção adicional de terras indígenas, e foi o que aconteceu. A nova ministra da Agricultura do Governo é Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias, ex-líder da bancada ruralista, que aceitou uma doação de campanha de um fazendeiro que havia sido acusado de ordenar o assassinato de um líder indígena. O funcionário encarregado das questões fundiárias é Nabhan Garcia, ex-presidente da União Democrática Ruralista e que lutou contra as demarcações do território indígena durante décadas.
No entanto, essas decisões políticas ainda não estão definidas em lei. A reestruturação ordenada pelo presidente tem vigência de 120 dias e deve ser analisada depois pelo Congresso. Além do Legislativo, o Poder Judiciário pode desempenhar um papel decisivo na moderação dos piores excessos de Bolsonaro. No final de janeiro, o Partido Socialista Brasileiro (PSB) entrou com um processo no Supremo Tribunal Federal, refutando a decisão do presidente de transferir ao Ministério da Agricultura a competência para demarcar as reservas. O tribunal ainda deve se pronunciar sobre esse caso em particular, mas os juízes do Brasil mostraram que estão dispostos a enfrentar o presidente.
O Governo invocou a “segurança nacional” para atropelar os direitos constitucionais dos povos indígenas. A comunidade Waimiri Atroari se opõe à instalação, sem seu consentimento, de uma linha de energia ao longo de mais de 100 quilômetros de seu território. Apesar de transportar eletricidade a municípios como Manaus, a obra não proporcionará energia às aldeias indígenas dentro da reserva. O Governo anunciou que o projeto começará em 30 de junho. Naturalmente, os membros da comunidade lutam contra a decisão.
Bolsonaro afirma que “o Brasil não deve nada ao mundo no tocante à preservação do meio ambiente” e mudou o procedimento de licenciamento ambiental para facilitar a construção em terras indígenas. Anunciaram-se vários megaprojetos de infraestrutura, incluindo uma barragem no rio Trombetas, uma ponte sobre o rio Amazonas e uma extensão da estrada de 500 quilômetros que atravessará a floresta tropical do rio Amazonas até a fronteira com o Suriname.
O Governo também ameaçou retirar o Brasil do crucial tratado internacional sobre os direitos dos povos indígenas e tribais, conhecido como Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Isso enfraqueceria ainda mais os direitos dos indígenas e eliminaria uma importante fiscalização internacional independente. A Convenção 169, ratificada pelo Brasil em 2002, foi usada desde então em sentenças de juízes e promotores, que têm a obrigação constitucional de processar o Estado quando este viola os direitos indígenas.
No entanto, os invasores ilegais de terras não esperam pela aprovação da lei ou pela decisão dos juízes. Pelo menos 14 territórios indígenas estão atualmente sob ataque. Nessa guerra de fronteiras, os madeireiros, garimpeiros, petroleiros e pecuaristas agora consideram, com razão, que o presidente está do lado deles. Durante a campanha presidencial, o desmatamento aumentou quase 50%. E as invasões de terras cresceram 150% desde que Bolsonaro foi eleito, em outubro do ano passado.
O Brasil é o país mais letal do mundo para os defensores do meio ambiente, mas a violência exercida contra os indígenas não pode ser explicada simplesmente como uma batalha por recursos: em muitos casos, é sem dúvida um crime de ódio. Na noite do triunfo eleitoral de Bolsonaro, por exemplo, um centro de saúde e uma escola foram atacados com bombas incendiárias na terra indígena Pankararu, no nordeste do país.
Na Survival International, continuamos recebendo dezenas de relatórios de todo o Brasil sobre o que parece ser uma guerra aberta contra as comunidades indígenas. Numa tentativa de aplacar as ONGs que se opõem aos seus interesses, Bolsonaro emitiu um decreto pelo qual as autoridades governamentais podem “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades dos organismos internacionais e das organizações não-governamentais no território nacional.”
Houve ameaças de expulsão dos grupos ecologistas, e Ricardo Salles, o novo ministro do meio ambiente, tentou suspender durante três meses todas as parcerias do Governo com as ONGs no país. Ele considera que as áreas protegidas da Amazônia freiam o “desenvolvimento” e defende a prática da agricultura comercial e da mineração nas reservas indígenas, incluindo aquelas onde vivem povos indígenas isolados, o que quase certamente os levariam à aniquilação.
O Governo atacou até mesmo a saúde indígena: propôs acabar com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), um modelo de atenção descentralizada com 34 distritos sanitários indígenas especiais, que funciona em colaboração com as comunidades locais de acordo com suas necessidades específicas. Em vez disso, os pacientes indígenas teriam que comparecer aos mesmos serviços municipais (já insuficientes e sobrecarregados) que atendem todos os demais habitantes do distrito. O ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, disse: “Para mais de 600.000 indígenas, os recursos que o país coloca… acho que poucos países colocam tanto.”
A proposta provocou indignação e protestos entre os povos indígenas do país inteiro. Temendo por suas vidas, e especialmente pelas vidas dos seus filhos e idosos, eles se preocupavam com o desconhecimento das línguas indígenas e com a possibilidade de que suas necessidades não fossem atendidas por um sistema projetado por e para pessoas com estilos de vida muito diferentes dos seus, desconhecendo-se totalmente como vivem e quais são suas circunstâncias. Do Paraná a Rondônia, de Pernambuco ao Mato Grosso do Sul, grupos indígenas ocuparam edifícios públicos e estradas em apoio à Sesai. Mais ou menos uma semana após o lançamento da proposta, o ministro recuou e garantiu publicamente que o sistema de saúde indígena não será abolido.
Essa vitória é encorajadora e importante, mas os conflitos estão longe de terminar: afinal, são apenas os primeiros 100 dias. Já estão muito avançados os preparativos para o Abril Indígena anual: milhares de indígenas se reunirão em Brasília para protestar contra as políticas do Governo, expressar suas preocupações e mostrar a diversidade cultural e a riqueza do país para todos os brasileiros. Este ano, há mais motivos do que nunca.
Sydney Possuelo, ex-diretor da Funai e defensor dos direitos dos povos indígenas do Brasil, declarou à Reuters: “A situação dos povos indígenas do Brasil nunca foi boa. Mas, durante 42 anos de trabalho na Amazônia, este é o momento mais perigoso que já vi.” David Karai Popygua, porta-voz dos Guarani, declarou: “É como se nós, agora, fôssemos um alvo do Governo a ser eliminado.” A declarada devoção do presidente pela ditadura, a tortura, a repressão brutal, a violência amparada pelo Estado e o assassinato extrajudicial levanta a terrível perspectiva de que o que vimos até agora pode ser, em mais de um sentido, apenas o começo.
Fiona Watson é diretora de pesquisas da Survival International, protetora dos direitos indígenas.
Este artigo foi publicado originalmente no blog 35000 Milliones / Planeta Futuro