Futuro presidente deve visitar primeiro o Chile, e não Argentina, como de praxe, e quer relação especial com EUA e Israel. Duro editorial do jornal estatal chinês ‘China Daily’ adverte eleito dos riscos econômicos de querer ser um “Trump tropical”
Jair Bolsonaro reservou um momento de seu curto discurso da vitória no domingo para prometer libertar o “Brasil e o Itamaraty das relações internacionais com viés ideológico a que foram submetidos nos últimos anos”. Era mais uma arenga com os Governos do PT, cujo antagonismo lhe ajudou a chegar à Presidência. Se analisados os primeiros sinais da diplomacia do futuro governo, no entanto, a guinada se projeta mais profunda e, em alguns aspectos, inédita, a ponto de desconcertar a Argentina, país estratégico para Brasília no pós-ditadura, e provocar advertência da China, principal parceiro comercial do Brasil.
Nas primeiras horas como presidente eleito, Bolsonaro celebrou um trunfo: um imediato telefonema de boas-vindas de Donald Trump. O presidente dos EUA ainda escreveria horas depois um tuíte efusivo descrevendo como “excelente” a conversa com Bolsonaro. Era tudo que desejava o futuro mandatário de extrema direita, cuja meta é explorar, apesar das grandes diferenças, a ideia de que é um “Trump tropical” e construir uma relação preferencial com os norte-americanos como não havia desde os anos 60. Como essas sinalizações vão evoluir, ainda não se sabe, mas parece ser o prenúncio da volta da diplomacia com marca presidencial animada pela afinidade com outros líderes populistas no poder.
Ao movimento se seguiu um da China. Além das felicitações protocolares, Pequim enviou um duro recado ao futuro Governo brasileiro, com o peso de quem manteve um intercâmbio comercial da ordem de 75 bilhões de dólares no ano passado com o país (20 bilhões de superávit brasileiro) e é a origem de vultuosos de investimentos. O jornal estatal China Daily, espécie de braço de relações públicas controlado pelo Partido Comunista chinês, dedicou um editorial a Bolsonaro chamado “Não há razão para que o ‘Trump Tropical’ revolucione (disrupt) as relações com a China”. O texto afirma que Bolsonaro foi “menos que amigável” na campanha – o brasileiro já defendeu que a China não compra no Brasil, mas “o Brasil”. Os chineses cobram que, como presidente, Bolsonaro aplique uma avaliação “objetiva e racional” das relações porque, do contrário, “o custo pode ser árduo para a economia brasileira”. O Global Times, outra publicação chinesa considerada porta-voz informal, chamou distanciamento de Bolsonaro de “inconcebível”.
Não foi o primeiro ruído com o Governo chinês. “Pequim vê a ascensão de Bolsonaro com muita preocupação. Ninguém na equipe do futuro Governo tinha consciência do custo político que poderia ter a visita que o presidente eleito fez a Taiwan em março”, diz Oliver Stuenkel, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e colunista do EL PAÍS. À época, Pequim reagiu com “indignação” porque considera a ilha taiwanesa uma parte rebelde do território chinês.
Stuenkel aposta que, nos bastidores, os chineses convencerão à futura gestão brasileira a agir de forma pragmática. Já um diplomata brasileiro, que preferiu não de identificar, avalia que há diferenças internas da equipe bolsonarista que vão se refletir na política externa: de um lado, há o receituário liberal do Paulo Guedes, que será o superministro de economia, e, de outro, a postura mais soberanista que o próprio Bolsonaro costumava defender. “As relações com a China darão a senha para compreendermos qual dessas visões prevalecerá”, diz o funcionário.
Argentina e a crise na Venezuela
Como em quase tudo relacionado aos planos de Bolsonaro, em política externa os detalhes também são poucos, e as idas e vindas, muitas. No final da campanha, o presidente eleito elogiou a China, por exemplo. Bolsonaro também conversou com os parceiros de Mercosul: o presidente da Argentina, Mauricio Macri, e com Mário Abdo Benítez, presidente do Paraguai, ambos com visões de economia afins à de Paulo Guedes. Entretanto, logo após a vitória, Guedes foi rude com uma jornalista argentina, afirmando que o bloco sul-americano “não era prioridade” e que tinha “viés ideológico”. Além disso, integrantes da equipe de Bolsonaro afirmam que sua primeira viagem ao exterior será ao Chile de Sebastián Piñera, e não à Argentina, como de praxe na diplomacia brasileira.
Tudo foi lido como um alerta para o conservador Macri – que tinha simpatia por Fernando Haddad, com quem manteve uma relação cordial quando o candidato derrotado do PT era prefeito de São Paulo e Macri de Buenos Aires. O relacionamento com o Brasil, primeiro destino de suas exportações argentinas, é fundamental para o país. A Argentina vendeu 58 bilhões de dólares ao mercado brasileiro, o equivalente a 20% do total exportado para o mundo. Por isso, Buenos Aires tomou cautelosamente as declarações bolsonaristas, esperando que os fatos deem uma dimensão real às ameaças. A incerteza é o que mais preocupa o governo argentino, especialmente porque o Mercosul está em arrastadas negociações com a União Europeia para um acordo de livre comércio. Macri foi o condutor dessas conversas, ainda que, na avaliação da diplomacia brasileira, aconteça o que acontecer com o Governo Bolsonaro, é o lado europeu que trava a negociação por causa do protecionismo no agronegócio. O chanceler argentino, Jorge Faurie, pediu que esperem para avaliar o que dizem os ministros de Bolsonaro “fora da campanha”. E ele concordou com Guedes na avaliação de que a integração regional “deveria se afastar de processos que têm um alto contexto ideológico”.
Além do comércio, no lado latino-americano, todas as expectativas estão colocadas no papel que Bolsonaro terá na crise e na deriva autoritária da Venezuela. Durante a campanha —como em tantas outras—, o país vizinho se transformou em munição para atacar seu rival, Fernando Haddad. Bolsonaro, da mesma forma que milhões de seus seguidores, criticou a proximidade que o Partido dos Trabalhadores (PT) teve com o regime chavista, mesmo que o apoio dado por Lula em sua época a Hugo Chávez seja bem diferente do que teve Maduro em anos posteriores. É evidente que Bolsonaro cortará qualquer tipo de relação com o chavismo e se alinhará a outros Governos, como o da Colômbia do conservador Iván Duque. Mas precisará assumir a crise migratória dos venezuelanos que procuram refúgio no Brasil, com uma fronteira cada vez mais quente.
Acordo de Paris e Israel
No plano global, Bolsonaro sinaliza que quer seguir os passos de Trump, e no movimento ganha o reforço do ex-assessor da campanha do presidente norte-americano Steve Bannon. Oferecendo-se como ideólogo a ligar nomes de uma onda populista de global de direita, Bannon, que se reuniu com um dos filhos de Bolsonaro há alguns meses, declarou sua simpatia pelo político brasileiro. O problema é que ser “Trump tropical” pode ter custos altos para um emergente como o Brasil. Bolsonaro chegou a ameaçar retirar o país do Acordo de Mudança Climática de Paris —algo que depois condicionou— e do Conselho dos Diretos Humanos da ONU. Se concretizado, isso poderia provocar reações, sobretudo na Europa.
Oliver Stuenkel, assim como outros analistas, dão como certo que Bolsonaro mudará a Jerusalém a embaixada do Brasil em Israel, alinhado a Trump e para cumprir uma promessa eleitoral que contentaria grande parte dos líderes evangélicos que o apoiaram e à comunicada judaica direitista, também crucial em sua campanha. Isso marcaria um antes e um depois na história da diplomacia brasileira, que até durante a ditadura manteve suas diretivas em relação ao conflito na região. Há inquietação com o passo, especialmente entre grandes produtores brasileiros de carne e frango que vendem parte expressiva da produção para o mundo árabe e temem uma retaliação.
Nesta quarta, começa formalmente a transição de Governo, e as bolsas de aposta para o nome do próximo chanceler estão abertas. A dúvida é se será nomeado alguém da carreira ou outra liderança. Entre os nomes que circulam está o da embaixadora Maria Nazareth Azevedo, que está atualmente em Genebra.