Documento da mineradora estima indenização de potenciais vidas perdidas em rompimento de barragens. Estudo é utilizado na avaliação de companhias sobre quais os riscos elas estão dispostas a aceitar
Uma morte em caso de rompimento de barragem da Vale tem o valor de 2,6 milhões de dólares —9,8 milhões de reais, no câmbio atual—. É o que aponta um documento interno no qual a mineradora analisa os riscos de suas barragens e quantifica uma série de consequências econômicas de um eventual rompimento, incluindo as indenizações por morte. Este tipo de estudo é um procedimento normal das empresas cujas atividades são consideradas de risco e é utilizado na avaliação e valoração das companhias sobre quais os riscos de suas atividades que elas estão dispostas a aceitar. Nele, são avaliadas desde as implicações econômicas e ambientais até os prejuízos à imagem da empresa e os custos com saúde e segurança em caso de um eventual rompimento. A empresa estimou em 1,5 bilhão de dólares o custo de um rompimento hipotético.
Segundo a Vale, todas as informações contidas no documento, produzido em 2015, partem de “situações hipotéticas” e o valor da indenização que a empresa deverá pagar às famílias das vítimas fatais de Brumadinho ainda está em discussão com as autoridades brasileiras. A empresa insiste que a barragem I da Mina do Feijão, que ruiu no último dia 25 de janeiro, não apresentava riscos de ruptura e que nos últimos quatro anos aumentou em 180% o investimento em segurança nas suas barragens. Até a última quinta-feira, haviam sido contabilizadas 166 mortese 155 desaparecidos por conta do desastre.
O documento em que a empresa estima o valor das potenciais vidas humanas que podem ser perdidas no caso de rompimento de barragens é intitulado Análise Quantitativa de Riscos em Barramentos — Definição das Consequências. Ele registra que a “indenização por perdas de vidas humanas é o tema com maior divergência de opiniões, elevado grau de incerteza e questões éticas associadas”. E discute três metodologias para chegar a um valor de indenização. No fim, a Vale adota como base a chamada “curva de tolerabilidade de riscos”, uma abordagem proposta pelo engenheiro norte-americano Robert Whitman na década de 1980 e que leva em consideração um gráfico que inclui consequências tanto em termos financeiros quanto em termos de potencial de perda de vidas humanas.
Com base nisso, essa metodologia instituiu na década de 1980 que o valor de uma vida é igual a um milhão de dólares. A própria Vale, no seu documento interno de 2015, corrige o valor para aquele ano e determina que a indenização por perdas de vida a ser considerada pela empresa deve ser de 2,6 milhões de dólares. “Esse valor deve ser convertido de dólar americano para reais conforme a cotação da moeda norte-americana na data de realização do cálculo do custo da indenização”, aponta o documento. Com isso, a indenização por morte conforme os cálculos admitidos pela Vale poderia chegar a 9,2 milhões reais na cotação atual. Este cálculo, porém, não inclui uma correção monetária para 2019.
Os cálculos da Justiça brasileira
O valor estipulado pela mineradora é superior às indenizações determinadas pela Justiça brasileira em casos de morte, que têm variado entre 300 a 500 salários mínimos nos últimos anos (ou de 15.000 reais a 152.000 reais). Esta foi uma das opções ventiladas pela Vale no seu estudo, mas a própria empresa avaliou o valor pequeno. “Observa-se que, considerando a política e valores da Vale, nas quais a vida humana está em primeiro lugar, cabe destacar que os valores que vem sendo arbitrados são bastante reduzidos”, argumenta a própria empresa no documento. A terceira metodologia considerada pela empresa tem como base de cálculo a quantia gasta para reduzir o risco ou quantia compensatória para se aceitar o risco, mas os valores eram tão discrepantes se aplicados a casos históricos que foram rechaçados pela mineradora.
Apesar de prever um valor superior de indenização à média determinada pela Justiça, não há como estimar o valor real das indenizações pagas pela Vale. No caso do rompimento da barragem de Mariana em 2015 — de propriedade da Samarco, empresa controlada pela Vale— foi feito um acordo extrajudicial para indenizar as vítimas que determina a confidencialidade dos valores. Parte das vítimas espera há três anos a reconstrução de suas casas. Também não é possível saber se o cálculo antes projetado pela Vale será considerado para indenizar os familiares das vítimas de Brumadinho. Questionada pelo EL PAÍS sobre isso, a mineradora disse apenas que “os estudos de risco e demais documentos elaborados por técnicos consideram, necessariamente, cenários hipotéticos para danos e perdas”. E insistiu, em nota: “Não existe em nenhum relatório, laudo ou estudo conhecido qualquer menção a risco de colapso iminente da Barragem I da Mina Córrego do Feijão, em Brumadinho. Pelo contrário, a barragem possuía todos os certificados de estabilidade e segurança, atestados por especialistas nacionais e internacionais”.
Impasses na negociação para indenizar vítimas
Chegar a um acordo sobre como será a indenização dos parentes das vítimas de Brumadinho não tem sido fácil. A Vale diz que os cálculos contidos no seu documento interno são apenas hipóteses e que os valores ainda estão em discussão com as autoridades. Na semana passada, o Ministério Público do Trabalho de Minas Gerais propôs à mineradora uma indenização de 2 milhões de reais ao grupo familiar dos trabalhadores mortos ou desaparecidos. Apesar do valor ser bem inferior aos 9 milhões de reais considerados em 2015 pela empresa em seu documento, a Vale não aceitou e fez uma contraproposta com o pagamento de indenização por danos morais de acordo com o parentesco com as vítimas. Seriam 300.000 reais ao cônjuge e a cada filho, 150.000 a cada pai e mãe e 75.000 a cada irmão. A empresa também pagaria plano de saúde para os familiares da vítima fatal, além de dois terços do salário líquido do trabalhador por mês até a data em que ele completaria 75 anos. Os familiares, porém, não aceitaram essa proposta. Nesta sexta-feira, a Vale acordou com os familiares que os salários dos funcionários mortos e desaparecidos continuarão sendo pagos até que se chegue a uma definição sobre as indenizações, cujos valores ainda estão em aberto.
O professor de Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Carlos Edison Monteiro, lamenta que empresas que desenvolvem atividades que podem pôr em risco a vida de pessoas quantifiquem as indenizações por mortes e muitas vezes usem este dado simplesmente como uma das referências para tomar decisões econômicas, aceitando riscos. “A vida humana não pode ser objeto de precificação, não pode ser [tratada como] um fator econômico que as empresas considerem para realizar atividades que põem em risco a vida das pessoas”, afirma. “O sistema jurídico brasileiro repudia o entendimento de que a morte de seres humanos vale a pena. É muito errado fazer este cálculo e assumir o risco por questões econômicas. Infelizmente, isso faz parte da cultura do país”, acrescenta.
Monteiro explica que o Código Civil brasileiro prevê na indenização material uma compensação por dano emergente (que inclui as despesas dos familiares logo após a morte, como despesas médicas anteriores ao óbito e funerais) e outra por lucro cessante (que visa compensar financeiramente os dependentes da pessoa que morreu). Mas a legislação prevê outra indenização, mais difícil de ser mensurada, que são os danos morais. Neste cálculo, há condicionantes. Em relação ao dever do responsável pela morte ao sustento dos dependentes, deve ser considerado quanto a vítima ganhava. Esse valor vai ser maior para dano material para alguém com um salário elevado que outro que ganhava apenas um salário mínimo, por exemplo. Já o dano moral é o mesmo para todas as vítimas.