O país real ficou de fora do seu discurso e do Jardim da Casa Branca
Leonard Cohen fez bem em morrer na véspera da eleição de Donald Trump em 2016. Deixou um vasto tesouro feito de palavras e música, entre elas a sublime “Aleluia”, canção-reflexão sobre amor e perda, espiritualidade e empatia. Muito da força desse hino à humanidade está no que ele deixa em aberto para interpretações múltiplas do que é ser, do que é viver. Difícil imaginar que Trump tenha sido fã do compositor canadense. Mais difícil ainda cogitar que Cohen algum dia se resignaria ao triunfo trumpista. Daí a vilania da rasteira post-mortem dada no artista por ocasião do festão de quinta-feira na Casa Branca: “Aleluia” foi entoada duas vezes, sem autorização dos herdeiros, na coroação do presidente-candidato à reeleição em novembro próximo. Nada transcendental, apenas um detalhe da grosseria em tudo o que leva a logomarca Trump.
Na cerimônia de encerramento da Convenção Republicana faltou apenas rebatizar o partido para Trump Party. De resto —da apropriação da Casa Branca como imobiliário do ocupante aos fogos de artifício proclamando “Trump 2020” sobre o Monumento a Washington —, o evento todo foi de adulação personalista. Nos jardins da “casa do povo americano” haviam sido plantadas 1.500 cadeiras para familiares e servidores públicos, não por servirem ao Estado, mas por serem servos de Trump. E, ao final de quatro dias de elegias, coube ao entronizado apresentar a sua versão fantasia de si mesmo.
Foi um discurso de 70 minutos que arrebatou a plateia. Mesclando fatos e ficção, o presidente proclamou-se predestinado guardião da Constituição e acenou com um futuro de grandeza nacional. Sobretudo, Trump incitou medo, recurso de eficácia comprovada em tantas eleições mundo afora. Richard Nixon disse o essencial em 1968 ao conquistar a Casa Branca: “As pessoas reagem a medo, não a amor. Ninguém aprende essas coisas em aula de catecismo, mas a verdade é essa.”
Na semana anterior, a Convenção Democrata também procurara definir Donald Trump como uma ameaça nacional — mas à democracia. O partido do presidente optou por retratar o país como uma presa da violência urbana. Uma escumalha de foras da lei e da ordem estaria a rondar os subúrbios brancos, governantes democratas seriam incapazes de conter o caos urbano, a China acabará com a bonança americana e, resumiu Trump, “ninguém mais estará em segurança nos Estados Unidos de Joe Biden”.
O presidente referiu-se ao adversário Biden 41 vezes, ora como incompetente desvertebrado — “está há 47 anos no Congresso e nunca fez nada” —, ora como “cavalo de Troia” a serviço da extrema-esquerda socialista.
Mas a estocada de Trump mais letal contra o adversário, e talvez a mais temida pela campanha democrata, ainda está por vir. Trata-se da reiterada insinuação do presidente de que Joe Biden, aos 77 anos, estaria com a acuidade cognitiva comprometida, portanto sem condições de liderar a nação.
Dias atrás Trump chegou a sugerir que os dois candidatos se submetessem a testes toxicológicos antes do primeiro debate presidencial, marcado para 29 de setembro, com divulgação dos remédios que cada um toma. Alegou ter observado que Biden apresentou-se apagado e confuso nos dez debates democratas coletivos, e que apenas no último, contra Bernie Sanders, apresentara vigor cerebral. O repórter do ultraconservador “Washington Examiner” quis saber se Trump estava sugerindo testes como os que lutadores fazem antes de subir no ringue.
“Sim”, respondeu o presidente, “debate é como uma luta entre gladiadores. Só que no debate você usa o cérebro e a boca. E também seu corpo. Quero debater em pé, não sentado como quer a comissão organizadora.”
A esse contexto que, por si, já parecia insólito, veio se juntar, também esta semana, um inesperado conselho público da presidente da Câmara, a democrata Nancy Pelosi, para Biden: recusar-se a debater com Trump no formato habitual. A falta de civilidade e a notória enxurrada de afirmações falsas do presidente tornariam o debate inútil, argumentou Pelosi. Por ora, Joe Biden descartou a sugestão. Ainda bem.
A tática do medo adotada por Trump contém um risco evidente — alardear para o caos num país que está sob seu comando há três anos e meio. O papel de presidente como espectador, não responsável pelas desgraças nacionais, só existe no planeta Trump, porque o país real ficou de fora do seu discurso e do Jardim da Casa Branca. Mas esse país real existe — ele tem 180 mil mortos por Covid, é formado por uma sociedade dilacerada pelo racismo, pela violência policial, esgotamento e desgoverno. É esse o país que vai votar. Ou deixar Donald J. Trump se reeleger. Rest in Peace, Leonard Cohen.