Fórum que pretende reduzir desigualdade não se destina a resolver problemas, e sim a apresentar ideias e adensar networking entre poderosos
Aos 92 anos, o naturalista britânico Sir David Attenborough tem obra aclamada e capital moral para nos ensinar montes sobre a vida no planeta Terra. Pena que seu discurso no Fórum Econômico de Davos, esta semana, recebeu menos atenção do que o fato de o príncipe Albert de Mônaco tê-lo entrevistado no evento. Nada como um príncipe para turbinar o noticiário, independentemente da qualidade do sangue azul que corre nas veias da realeza.
Attenborough apresentou-se literalmente como um homem de outra era. “Nasci durante o Holoceno — o período de estabilidade climática que durou 12 mil anos e que permitiu aos humanos assentarem-se, cultivarem a terra e criarem civilizações”, explicou. Nesse período, o homem aprendeu a trocar ideias e mercadorias, tornando-nos “a espécie globalmente conectada que somos hoje”. Ao longo de sua vida, porém, tudo isso mudou. “O Holoceno acabou. O Jardim de Éden deixou de existir. Mudamos o mundo de tal forma que os cientistas já falam de uma nova era geológica…”
Difícil atestar se o alerta de Attenborough, segundo o qual ameaças ambientais são, em essência, o perigo número 1 para a economia global, teve algum impacto em Davos. Em contrapartida, levantamento feito pela ONG britânica CDP (sigla de Carbon Disclosure Project) junto a mais de sete mil empresas do mundo inteiro, mereceu a devida atenção. O trabalho revela os dois lados da moeda ambiental: o que impulsiona ainda mais os negócios, e o que ameaça paralisar gigantes corporativos. Ambos em decorrência dos mesmos desastres e tragédias climáticas.
A newsletter americana Axios pinçou algumas respostas-choque das empresas consultadas pela CDP sobre o impacto do clima nos seus negócios. A gigante farmacêutica Merck & Co, por exemplo, prevê um aumento no número de pessoas doentes mundo afora, o que alavanca a demanda por toda uma gama específica de medicamentos. As concorrentes Eli Lilly e Pfizer apostam na mesma linha.
A Apple, por seu lado, prevê que mais desastres tornarão essenciais a multiplicação de iPhones como ferramenta socorrista, enquanto a Coca-Cola manifesta grande preocupação com a escassez de água e os consequentes riscos de paralisação para suas operações. Disponibilidade de água cada vez menor também assombra os fabricantes mundiais de chips eletrônicos, e as grandes seguradoras temem não ter colchão para responder a sucessivas condições climáticas extremas. A conclusão dos analistas é que, diante da enormidade que se avizinha, o mundo corporativo talvez comece a demandar de governos políticas públicas ambientais mais severas.
Esse universo corporativo é o que frequenta Davos. Dos cerca de três mil participantes, perto de 900 são CEOs ou presidentes de empresas, e mais de 70 são líderes mundiais — embora nem sempre de primeiro time. O Fórum que pretende reduzir desigualdade e encarar a questão ambiental não se destina a resolver problemas, e sim a apresentar ideias e adensar o networking entre poderosos, influentes e famosos. Ou, como descreveu o escritor e analista de riscos Nassim N. Taleb, “o evento é uma desenfreada caça a pessoas de sucesso, que por sua vez querem ser vistas com outras pessoas de sucesso”. Mesmo veteranos de várias edições concordam com uma avaliação feita anos atrás pelo fundador da AOL, Steve Case: “Você sempre tem a sensação de estar no lugar errado, que tem alguma reunião muito mais importante acontecendo onde você não está. É como se o verdadeiro Fórum estivesse acontecendo alhures, em segredo”.
Como da primeira Davos a gente nunca se esquece, é certeiro o comentário do presidente Jair Bolsonaro entreouvido pela reportagem do “Estado de S.Paulo” sobre “os pobretões que estavam na minha mesa ontem”. O presidente referia-se ao jantar de véspera no qual o fundador do Fórum, Klaus Schwab, as rainhas da Jordânia e da Bélgica, e os presidente da Apple e da Microsoft estavam entre seus comensais. A presença física de bilionários em Davos é rotineira. Este ano a novidade foi ter o seu peso aquilatado em relatório da Oxfam, divulgado simultaneamente ao evento. A constatação de que apenas 26 desses indivíduos concentram um volume de riqueza igual ao de 3,8 bilhões de pessoas espalhadas pelo planeta assombrou até mesmo os mais cínicos. O brasileiro Jorge Paulo Lemann ficou fora dessa seleta por pouco — está em 29º lugar na lista dos mais bilionários, cujos ativos cresceram US$ 2,5 bilhões por dia.
O Jardim do Éden acabou, como disse Attenborough. No Brasil, a nova era se escancara no horrendo desastre ambiental de Brumadinho.