A vida é mais interessante e indomável. Melhor focarmos nela primeiro
Na sexta-feira passada, Dia Internacional da Mulher, as homenagens e atos foram sendo noticiados em moto quase contínuo, com sua maré crescente de autocongraçamentos, cobranças relevantes, pronunciamentos edificantes. No fundo, o 8 de março lembra um pouco os fogos de artifício em cascata que celebram o Ano Novo: uma onda contínua que começa lá pelas bandas da Nova Zelândia, no extremo Leste do mundo, e seguindo o fuso horário de festejos completa sua rota no Oeste californiano.
Também houve silêncios notáveis, ou referências inadequadas, tudo computado e compartilhado em tempo real pelas redes sociais. E houve sobretudo a imensa massa das (dos) que têm a vida para tocar e precisam tocá-la à margem da história. Em meio a esse mundaréu cabe refletir um pouco sobre a mensagem utilitário-subliminar da guru japonesa Marie Kondo.
Autora do fenômeno global “A mágica da arrumação do lar” (Sextante), que desde 2014 é consumido aos milhares em mais de 30 países, Kondo, no primeiro dia de 2019, também estreou seu método de organização doméstica no Netflix — e com igual estrondo. Os oito episódios dessa primeira temporada repetem à exaustão a fórmula que a consagrou. Capitã Marvel de casas em desalinho, ela atende a chamados com uma solução eficaz para devolver ordem e paz a famílias: basta aprender a arrumar e a descartar.
As famílias socorridas por Kondo têm em comum mães estressadas que se autoincriminam, e pais aflitos. Quando a porta se abre para Kondo, é como se entrasse um facho de luz. Sempre vestida de jaqueta branca que combina com sua pele alvíssima, a diminuta guru é um furacão minimalista. Saltita entre montanhas de roupas que emergem de armários abarrotados, reordena o conteúdo de uma casa inteira sem alterar penteado e sorriso, e nunca sua, mesmo quando carrega tralhas e mais tralhas de um ambiente a outro.
Aos 34 anos, Kondo se apresenta como salvação alcançável para milhares de mulheres que cresceram convencidas de que a arrumação da casa depende delas, e a felicidade do lar, também. Várias dicas do método aperfeiçoado pela autora desde os seus tempos de menina são práticas e factíveis, solucionam problemas e simplificam o cotidiano. Mas Marie Kondo, cuja aparência de felicidade absoluta é quase robótica, tornou-se fenômeno contagioso por prometer mais. “Quando experimentar o que é ter uma casa realmente organizada, sentirá como todo o seu mundo ficará iluminado”, garante ela. Ao final, quando toda a casa tiver sido devassada, entranhas de fora, com tudo selecionado, organizado e enxugado em um terço, teremos uma mulher, esposa e mãe acalmada, plena. À la anos 1950, apenas sem avental. Lar arrumado, sinônimo de harmonia familiar e individual.
“Pois eu não quero ser essa mulher tão impecável quanto uma jaqueta branca. Quero ficar em casa sem fazer nada, de moletom cinza e cabelo não lavado, no sofá de uma sala com cara de sala em casa onde tem crianças”, escreveu no semanário alemão “Die Zeit” a colunista alemã Mareice Kaiser, a propósito do ideal de arrumação da japonesa. “Aliás, é hora de sair em defesa da mulher preguiçosa, da mulher que tem gana de parar”.
Foi no hoje lendário 24 de outubro de 1975 que as mulheres de Reykjavik cruzaram os braços e fizeram aflorar a força e o peso do trabalho feminino na Islândia. Paralisaram o sistema de comunicações do país, escolas e creches não puderam abrir, o cotidiano da capital emperrou, ficou irreconhecível. Quatro anos depois, as instituições responderam às demandas daquele protesto e, desde então, a Islândia figura com destaque no ranking mundial de igualdade de gênero no trabalho.
Desordem estimula criatividade, como já se discutiu tanto, ou, ao contrário, crianças que crescem em ambientes desarrumados tornam-se adultos problemáticos? Sempre existirão estudos apontando em direções contrárias, mas satisfazer-se com a execução de uma meta confinada a quatro paredes é enganoso. Ao contrário de uma casa, armário ou gaveta, onde uma ordem perfeccionista é possível, a vida é mais interessante e indomável. Melhor focarmos nela primeiro. É o que fizeram as grandes mulheres da história — da marroquina Fatima Al-Fihri, fundadora da primeira universidade do mundo ainda em atividade (em Fez).
Esta semana, a augusta Académie Française, guardiã oficial do idioma francês desde o século XVII, finalmente anunciou estudar a “feminização dos nomes de profissões, cargos, funções e patentes militares”. É quase uma revolução, considerando-se a notória cautela com que seus 40 membros (35 homens, 5 mulheres, 1 negro) lidam com a tarefa de atualizar o sagrado idioma. Assim, a variante feminina para, entre outros, “autor”, “escritor”, “mestre de conferências”, “presidente”, “deputado”, já há décadas de uso corrente na sociedade, receberá o selo oficial. Uma das palavras em torno da qual há menos consenso, até agora, continua sendo “chef” (seja na culinária ou na acepção genérica). Talvez fique para o próximo século.