Obama desvestiu-se da sua oratória poética para comunicar, em tom de urgência, que a nação corre perigo
Feliz do país que, como os Estados Unidos, tem no seu acervo de instituições democráticas algo tão peculiar como sua confraria de ex-presidentes. O seleto clube nunca conseguiu ter mais de seis membros, uma vez que ex-presidentes também morrem. Mas, desde que foi criado formalmente por Harry Truman, em meados do século 20, com estatuto e direito à sede própria perto da Casa Branca, os ex servem de esteio valiosíssimo para quem assume a Presidência. Os relacionamentos entre eles e com o titular na Casa Branca se forjam com o tempo. São relacionamentos por vezes surpreendentes, de afeto tardio, outras vezes hostis ou cheios de reservas, mas sempre respeitosos. Todos do clube passaram pela mesma experiência, conheceram as falácias do poder, acumularam cicatrizes no comando da nação. E todos, quando eleitos, recorreram ao clube em algum momento de seus mandatos. Menos Donald Trump, que não confia em ninguém.
Em outubro de 1981, diante da notícia-choque do assassinato do líder egípcio Anuar Sadat em atentado no Cairo, Ronald Reagan convocou três antecessores para representá-lo nos funerais de Estado: Gerald Ford, Richard Nixon e Jimmy Carter. A longa viagem tinha tudo para dar errado: Ford nunca se afinara com o encrenqueiro Carter, e este jamais escondera o desapreço por Nixon. Os três haviam se tornado ex-presidentes ou em desgraça, ou decepcionados, ou trucidados nas urnas. As questões de protocolo no voo foram espinhosas até para definir quem subiria primeiro no Air Force One. Mas ao final o trio já se tratava por Dick, Jimmy e Jerry. A partir dali, Ford e Carter estabeleceram uma parceria tão longeva que decidiram firmar um pacto — quem sobrevivesse ao outro faria o tributo final no funeral do morto. E assim foi.
Cabe também lembrar a tradicional “carta ao sucessor” deixada na mesa de carvalho do Salão Oval por todos os presidentes no derradeiro dia de poder. “Quando você ler esta carta você será Nosso Presidente… Torço por você”, escreveu o republicano George H.W. Bush em bilhete endereçado ao democrata Bill Clinton. E assim foi — Bush sênior sempre torceu pelo sucessor. Também Barack Obama, pouco após a posse em 2009, tratou de convidar para um almoço íntimo os quatro membros do clube dos ex da época: Bush pai e filho, Carter e Clinton. “Conseguimos deixá-lo à vontade falando de nossas próprias inseguranças, trocando lembranças”, contou Carter em livro. “Todos que ocuparam o posto entendem que o cargo transcende o indivíduo.”
Todos, menos Donald Trump.
Difícil imaginar o teor de uma hipotética “carta ao sucessor” redigida de próprio punho por Trump. Talvez um tuíte? Ou apenas sua assinatura garrafal? Ou nem isso? A tentativa de adiar a qualquer custo a passagem de bastão poderia levá-lo a desviar da caminhada democrática iniciada há 244 anos.
Foi pensando nisso que Barack Obama falou à nação esta semana. É útil ouvir e ler o discurso na íntegra para apreciar a escolha de cada uma de suas 2.298 palavras. O tom de voz sombrio tem peso equivalente ao conteúdo. Nada no texto é acidental ou retórico. Obama desvestiu-se de sua conhecida oratória poética para comunicar, em tom de urgência, que a nação americana corre perigo. A palavra “democracia” é repetida 18 vezes, e o alerta vem sem enfeites: “Este governo já demonstrou que, para vencer, derrubará nossa democracia se achar necessário”.
Pela primeira vez na história dos EUA, um ex-presidente afirma que outro presidente, no exercício do cargo, ameaça a democracia, é moralmente falido e inteiramente despreparado para liderar o país.
A fala de Obama fez parte da programação de quatro dias que oficializou a chapa Joe Biden/Kamala Harris no confronto com Trump. Mas ficará registrada como um dos discursos mais relevantes de toda a carreira pública do ex-presidente. Como a pandemia condenara a Convenção Democrata a um formato 100% virtual — alguns dos recursos utilizados deram muito certo, por sinal —, Obama escolheu o Museu da Revolução Americana na Filadélfia para lhe servir de pano de fundo silencioso, carregado de história. Foi mais decisivo do que Hillary e Bill Clinton somados.
Caberá ao amplo leque de vozes que acredita em “We, the People…” tentar empurrar o candidato democrata para a vitória perseguida por Joe Biden há 33 anos. A depender do seu discurso de aceitação, sozinho ele não conseguirá turbinar a nação “para além da escuridão atual”. Foi designado pela temperança de agregador e pela imagem de decência exigida no momento. Tomara que seja o suficiente. Cabe sempre lembrar que Donald Trump não é uma aberração solitária, nem a causa do estado de desagregação cívica do país. O ocupante da Casa Branca é apenas o sintoma mais berrante e perigoso da corrente obscurantista que o colocou no poder. Tem tudo para ser, também, um dos piores ex-presidentes da história.