Apesar de tudo o que vivenciou, ele manteve distância da tribo de veteranos cínicos que existe em qualquer profissão
‘Repórter é fundamental. É certamente a única função pela qual vale a pena ser jornalista”, escreveu Clóvis Rossi no longínquo ano de 1990, em texto de apresentação do livro “A aventura da reportagem”, de Ricardo Kotscho e Gilberto Dimenstein. Explicou:
“Jornalista não fica rico, a não ser um punhado de iluminados. Jornalista não fica famoso, a não ser um outro (ou o mesmo) punhado, e assim mesmo no círculo que frequenta ou no qual é lido. Jornalismo, por isso, só vale a pena pela sensação de se poder ser testemunha ocular da história de seu tempo. E a história ocorre sempre na rua, nunca numa redação de jornal. Rua pode ser a rua propriamente dita, mas pode também ser um estádio de futebol, a favela da Rocinha, o palanque de um comício, o gabinete de uma autoridade, as selvas de El Salvador, os campos petrolíferos do Oriente Médio. Só não pode ser a redação de um jornal”.
Ao morrer nesta sexta-feira aos 76 anos, Rossi deixou o batente de apurar notícias nas ruas da vida. Nunca se serviu do ofício para compor um figurino. Nem o do repórter solitário, indomável e charmosamente rabugento como Seymour Hersh, a quem o mundo deve revelações seminais como My Lai e Abu Ghraib. Tampouco o do repórter que aposta no estilo intrépido, incansável, dono da notícia. Não era tímido nem falsamente modesto. Muito menos invisível (tinha 1m98), o que ajudava em coberturas de manada como cúpulas mundiais ou Copas do Mundo. Se andava curvado, era para ouvir melhor os demais bípedes.
Clóvis Rossi não precisou aprender a arte de amadurecer com o filósofo/historiador/matemático Bertrand Russell. “Torne seus interesses gradualmente mais vastos e impessoais, até que, pouco a pouco, os muros do ego retrocedam e sua vida se funda cada vez mais com o viver universal”, recomendava o Nobel de Literatura. Por índole própria, o jornalista guardou o ego no seu devido lugar e foi aguçar os demais sentidos para retratar o que apurava. Sabia ver o que olhava e escutar o que lhe diziam, não apenas reproduzir aspas. Jornalismo-gravador não era sua praia. Como já ensinara o colombiano Gabriel García Márquez, “um gravador ouve mas não escuta, repete como um papagaio digital mas não pensa, é fiel mas não tem coração”.
A definição de jornalismo com a qual Rossi melhor se identificava foi cunhada nos anos 1970 por Carl Bernstein, da dupla de repórteres que desvendou o caso Watergate e levou o presidente Richard Nixon à renúncia: “Jornalismo é a melhor versão da verdade possível de se obter”. Vale reler a frase, de tão sucinta. Bernstein partia do pressuposto de que a verdade inteira é inalcançável e que o ofício de apurar nunca se esgota.
Apesar de tudo o que vivenciou como olheiro globe-trotter, Rossi manteve distância da tribo de veteranos cínicos que existe em qualquer profissão, mas que no jornalismo é duplamente sinistra por anestesiar a curiosidade, o interesse, a surpresa. Ele não se pautava pela sociedade do espetáculo, na qual tudo o que é vivido torna-se uma representação. Conhecia História, respeitava o métier e não se deixava seduzir pela indignação rastaquera que cabe em um tuíte. Aliás, o único post que consta de seu perfil no Twitter data de 2013 , tem apenas 13 caracteres e atesta seu humor cortante: “Acho que sou gay”.
Mas que ninguém se engane. Sempre que achou necessário, Rossi soube ser tão contundente na denúncia e vibrante na defesa, quanto persistente na cobrança. Seu radar captava o universal de um fait-divers miúdo e apontava o local em coberturas mastodônticas. Ajudou o leitor brasileiro a escancarar a fronteira do conhecimento sobre os países que nos cercam — a América Latina é aqui, demonstrou. E viveu o suficiente para ver tudo acontecer e o seu contrário também.
Sobretudo, respondeu às tantas transformações, incertezas e ataques ao jornalismo com mais jornalismo. Muito bacana ter sido sua contemporânea. Menos bom saber que nosso prazo de validade está expirando.