Brutalidade da disseminação da Covid-19 no Brasil começa a exibir suas entranhas
‘Tudo sob controle… Não sabemos de quem”, gracejou o vice-presidente Hamilton Mourão para jornalistas à saída da cerimônia de posse do novo ministro da Saúde. Comentário ligeirinho, espirituoso e ferino de quem sabe que não pode ser demitido do cargo pelo presidente da República. Nesta toada a autofagia em Brasília avança mais rápido do que o coronavírus. Em tempos normais, os embates intestinos no poder federal talvez fossem o mais alarmante para este momento de calamidade. Em tempos anormais como agora, eles consomem o resquício de lucidez que o país algum dia achou que tinha.
Quem fica mais nu a cada dia não é apenas o chefe da nação que se pensava rei — é o Brasil cru, sem fantasia, que vai emergir da pandemia. “Vai ser a devastação de uma raça chamada favela”, alerta Celso Athayde, fundador da Central Única das Favelas (Cufa), do Data Favela e da FHolding. Athayde nada tem de incendiário. Ele se faz ouvir por conhecer o universo do qual fala. Em recente entrevista ao “Jornal do Commercio”, elencou as duas únicas opções para os 13,5 milhões que moram em favelas no Brasil — correr ou morrer afogado. “A favela está se contaminando. É gente que não pode parar, mas que ninguém vê…”, disse, referindo-se à base da pirâmide de serviços essenciais sem a qual o resto do país em quarentena entra em colapso. Athayde preferiria não falar de convulsão social, mas adverte que “as pessoas não vão morrer de sede do lado de uma caixa d’água porque ela tem dono”. E conclui: “A pior crise é a crise de perspectiva. A favela não quer desordem, sabe que é ela quem vai tomar o tiro de borracha. Mas ela perde a capacidade de sonhar. Por não ter mais nada, vai fazer o quê?”
Uma amostra do horizonte social se estreitando pode ser visto na tumultuada disponibilização do auxílio emergencial de R$ 600 para os trabalhadores informais mais vulneráveis. Pela previsão inicial do governo, o total de beneficiados alcançaria 51,4 milhões, número já corrigido para mais de 70 milhões, ou 40% da força de trabalho nacional em idade adulta. É tentacular o tamanho desse Brasil carente de rede de amparo que agora sai da invisibilidade e se posta em filas de até 10 horas em frente a agências da Caixa Econômica Federal. É todo um povo fora dos cadastros do governo, ou cujos dados são precários, irregulares, e que sempre viveu na berlinda da cidadania. Uma parcela de povo que tinha mais o que fazer do que regularizar sua pendência eleitoral. Voto obrigatório também dá nisso.
A operação de fazer chegar R$ 600 a esse mundão invisível é das mais complexas, sem dúvida. Como supor que ela seria alcançável apenas via internet, realizável através do preenchimento de um aplicativo de cadastramento? Na aflição de perder a vez, quem ficou horas tentando contornar as dificuldades do sistema tratou de se garantir correndo inutilmente para agências físicas da Caixa e da Receita, formando muralhas humanas hospitaleiras ao vírus. Quem sempre recebeu migalhas confia pouco em promessas.
Mais tarde do que cedo, o fluxo emergencial haverá de se regularizar, mas até lá a Covid-19, nascida na China mais de quatro meses atrás e aportada no Brasil em fevereiro, terá feito outras tantas vítimas. Que haverão de se somar ao passivo social da era anterior ao coronavírus — entre outros, uma fila de espera no INSS de 1,6 milhão de pedidos de benefícios aguardando análise.
O temido colapso das redes públicas de saúde agora bate com impiedade à porta do Brasil. Metade dos leitos de UTI do país, ou quase a metade, está instalada em hospitais privados. Considerando-se que 75% dos brasileiros dependem exclusivamente do SUS, e que é esta faixa da população que começa a ser ceifada pelo vírus, a tragédia anunciada se instala pra valer.
A história já comprovou que ser humano (do verbo ser, não do substantivo “ser humano”) é uma atividade coletiva. Veremos o quanto. A partir desta semana a brutalidade da disseminação da Covid-19 no Brasil começa a exibir suas entranhas. Com a nau em Brasília em modo disfuncional.