Agora que a casa caiu, a esparrela das movimentações financeiras dos Bolsonaro será escancarada mais cedo do que tarde
Um silêncio nunca consegue ser de todo silencioso. Mais de meio século atrás, o compositor de música contemporânea John Cage sentou-se ao piano do Maverick Concert Hall em Woodstock (pois é, Woodstock), no Estado de Nova York, e apresentou a peça que o tornaria célebre. Durante 4 minutos e 33 segundos “tocou” o que seriam três movimentos com as mãos imóveis sobre o teclado fechado. Daí o nome da peça, “4:33”, e o estrondo que fez. A obra continua a ser apresentada por pianistas clássicos mundo afora, com cada plateia preenchendo o desconfortável silêncio ouvindo os sons ao redor. São sons do cotidiano imprevisível — um tossir, um ranger, um respirar pesado, um roçar de papel — que em salas de acústica afinada adquirem peso novo. No fundo, cada um ouve o que não pretendia escutar.
O abraço de três segundos desta quinta-feira entre o presidente Jair Bolsonaro e Abraham Weintraub também se presta a leituras múltiplas. Cada um interpreta como quiser, mas não é ilícito ver na cena o abraço de um afogado. Um só — Bolsonaro.
Dadas as circunstâncias, os náufragos naquele enlace forçado deveriam ser dois — o ministro da Educação defenestrado e o chefe de Estado no seu dies mais horribilis desde a posse. Só que Weintraub pôde se programar para a cena, enquanto a explosiva prisão de Fabrício Queiroz horas antes deixara o presidente à míngua de oxigênio. Para o vídeo de três minutos em que anunciou sua demissão, Weintraub se apresentou de paletó aberto e mão no bolso, com uma sem-cerimônia estudada e cafajeste, sob medida para os “muitos Weintraubs” que ele disse ter descoberto no Brasil. Agraciado com um cargo de R$ 1,3 milhão anuais no Banco Mundial em Washington, disporá, se efetivado, desse colchão de distância das investigações judiciais que o envolvem no inquérito das fake news. Ainda que venha a ser alcançado pela Justiça, contudo, jamais conseguirá pagar a dívida histórica que contraiu com toda uma geração de brasileiros: ele foi, até o ultimíssimo decreto, o ministro da Educação mais ruinoso da História do Brasil.
Já Bolsonaro, seja na cena do abraço ou longe dela, não tem para onde ir. Encolhido, olhar vazado e desprovido de seu talento para farejar fraquezas alheias e improvisar, o presidente pareceu de cera no “abracinho” obtido a fórceps por Weintraub. Pouco a ver com o desconforto em demitir o décimo membro do seu Ministério. Tudo a ver com a implosão do esconderijo de Fabrício Queiroz. Amigo há décadas do atual presidente, Queiroz atuou como faz-tudo ao hoje senador Flávio, enquanto o filho 01 foi deputado estadual do Rio. Por isso, caso decida falar, Queiroz será a testemunha mais apta a elucidar a teia de ligações perigosas do clã Bolsonaro. Como escreveu a jornalista Míriam Leitão, o nome “rachadinha”, no diminutivo como é da cultura carioca, reduz o peso do crime que lhes é imputado. Trata-se, no mínimo, de desvio de dinheiro público, com fortes indícios de ser muito mais. A parceria tóxica com a criminalidade miliciana, se comprovada, apertará o cerco a um presidente já sitiado por outros inquéritos, com potencial de levar à sua cassação ou impeachment.
Teve efeito bumerangue a gritante mudez do presidente da República no dia da prisão de Queiroz. Assim como a obra “4:33” de John Cage adquire vida própria pelos ruídos fora da cena, o fatal silêncio de Bolsonaro na quinta-feira foi atropelado pelo desenrolar de fartos acontecimentos em tempo real. A diferença, claro, é que o músico vanguardista americano teve no silêncio a sua criação. Já Bolsonaro recorreu ao silêncio como refúgio para o medo. Embrulhado numa jaqueta de tamanho acima do necessário na live semanal, na noite de quinta-feira, parecia outro homem. Encolhera.
Entre os protagonistas principais da trama atual, a figura do advogado de melenas graúnas Frederick Wassef é a mais exótica até agora. Apesar de ser o advogado oficial de Flávio Bolsonaro e se dizer causídico do presidente (ou então, justamente por isso), teve a péssima ideia de manter Queiroz por meses em um sítio de sua propriedade, ao abrigo de uma eventual diligência do Ministério Público do Rio de Janeiro.
Agora que a casa caiu, a esparrela das movimentações financeiras dos Bolsonaro será escancarada mais cedo do que tarde. Ela se encontra com um Brasil de mais de 1 milhão de infectados pelo coronavírus, um corolário de 50 mil mortos, um Ministério da Saúde à deriva e um governo insano.
Neste Brasil o silêncio começou a deixar de ser uma opção. Melhor assim.