No ano passado, o AlphaGo, programa criado pela companhia inglesa Deep Mind, do Google, ganhou de 4 x 1 do sul-coreano Lee Sedol, o melhor jogador do jogo chinês Go. Foi um fato histórico. No jogo de damas, se um humano e um computador jogarem em perfeitas condições, o resultado será empate, ou seja, o computador hoje jamais perderia um jogo de damas. No xadrez, a probabilidade é de que o melhor computador ganhe do melhor jogador humano.
Se, por um lado, a inteligência artificial (IA) realiza tarefas que são supostamente prerrogativas dos seres humanos, sua capacidade ultrapassa as limitações humanas. Parte do sucesso da Netflix, por exemplo, está em seu sistema de personalização, em que algoritmos analisam as preferências do usuário (e de grupos de usuários com preferências semelhantes) e, com base nelas, sugere filmes e séries.
O caso da IA é ímpar: pela primeira vez na história estamos diante de outra “espécie” inteligente, com a perspectiva de, nas próximas décadas, superar a inteligência humana, tornando-se uma “superinteligência”. Outro fato inédito é que pela primeira vez o homem criou algo sob o qual não tem controle. Esses dois fatos afetam o futuro da humanidade. O que ainda tem ares de ficção científica pode estar mais próximo do que imaginamos. A inteligência artificial permeia nosso cotidiano. Acessamos sistemas inteligentes para programar o itinerário com o Waze, pesquisar no Google e receber do Spotify recomendações de músicas. A Siri, da Apple, o Google Now e a Cortada, da Microsoft, são assistentes pessoais digitais inteligentes que nos ajudam a localizar informações úteis com acesso por meio de voz com perguntas tais como “O que está na minha agenda hoje?” ou “Qual o posto de gasolina mais próximo?”.
O Google colocou à venda nos EUA, em outubro, um assistente doméstico apto a controlar os dispositivos conectados na casa, acionado por comando de voz com a frase “Ok Google”. Igualmente, é a IA que está por trás dos algoritmos que identificam fotografias no Instagram ou no Facebook e que tornam os anúncios on-line assertivos com o perfil do usuário. Quem já não se surpreendeu ao chegar em outro país, acessar o Facebook e receber anúncios de restaurantes e lojas locais?
Grandes varejistas, como o supermercado inglês Target e a Amazon, investem em projetos que, com base no histórico, sejam capazes de antecipar compras do consumidor. O conceito da “geladeira inteligente” da Samsung é de “family hub”, ou seja, a geladeira ser um centralizador de informações da família, com recursos simples como uma tela para fixar anotações e fotos, aos mais sofisticados como a visualização no smartphone do seu interior. A expectativa é de que em breve as geladeiras “conversem” diretamente com supermercados repondo automaticamente os produtos.
O serviço de atendimento on-line ao cliente se beneficia com o processamento de linguagem natural; o desempenho dos robôs é tão perfeito que temos a sensação de estar interagindo com pessoas do outro lado da linha. A IA está presente nos sistemas de detecção de fraude e também nos serviços de vigilância, em que algoritmos são treinados para reconhecer uma “ameaça”. No campo da saúde os avanços são diversificados, com ganhos de precisão nos diagnósticos, nos processos cirúrgicos e no enfrentamento de epidemias. Recentemente, um sistema inteligente diagnosticou 90% dos casos de câncer de pulmão, superando os médicos que alcançaram êxito em apenas 50% deles.
Distinto de tecnologias que substituíram funções associadas a aptidões físicas, a inteligência artificial ameaça a elite da sociedade
Cunhado em 1956, o termo inteligência artificial deu início a um campo de conhecimento dos mais controversos da ciência da computação, associado com linguagem e inteligência humana, raciocínio, aprendizagem e resolução de problemas. O pesquisador Davi Geiger, do Instituto Courant da New York University, propõe pensar a IA numa perspectiva simplificada, como a reprodução do que é controlado pelo cérebro humano – o movimento de andar, por exemplo, é controlado pelo cérebro, assim como enxergar.
Todas as sensações que vão ao cérebro são do domínio da inteligência, logo estão potencialmente no campo da IA. Esse foi o pressuposto do colóquio de Eberhart Fetz, da Washington University, no Center for Neural Science (NYU): um computador minúsculo que, implantado no cérebro humano, recupere movimentos perdidos, como a mobilidade de uma perna, suplantando as próteses mecânicas. As experiências empíricas estão sendo realizadas em macacos e os prognósticos são animadores.
Dois eventos recentes e correlacionados galvanizaram as pesquisas em IA: a explosão de uma enorme quantidade de dados na internet e a técnica Deep Learning. Big Data é o termo em inglês para essa grande quantidade de dados gerados na internet. Sua complexidade reside não somente na quantidade, mas também na variedade e velocidade com que os dados são produzidos por humanos e por autorreprodução. Como extrair informação dessa quantidade enorme de dados? É justamente aí que entra a inteligência artificial.
Os métodos de extrair informação são de uma subárea da IA denominada Machine Learning. A técnica não ensina as máquinas a, por exemplo, jogar um jogo, mas ensina como aprender a jogar um jogo. O processo é distinto da tradicional “programação”. Essa priori “sutil” diferença é o fundamento da IA. Todos os elementos da movimentação on-line – bases de dados, “tracking”, “cookies”, pesquisa, armazenamento, links etc. – atuam como “professores” da IA. O termo hoje mais amigável é Deep Learning. O curioso é que, como explica Geiger, não sabemos como essas máquinas funcionam. Tom Mullaney, de Stanford, em palestra na Universidade de Columbia, provocou: “Se você perguntar para um cara se sabe exatamente o que acontece no interior das máquinas, se ele for honesto vai responder que não sabe”.
As grandes empresas de tecnologia estão investindo pesado em sistemas inteligentes. A Apple, em 2015, adquiriu a empresa britânica Vocal IQ, produtora de tecnologia voltada para controle de voz, e, no início de 2016, comprou a startup de inteligência artificial Emotient, com foco na tecnologia de reconhecimento facial e reação dos clientes aos anúncios. O projeto Oxford, da Microsoft, disponibiliza um conjunto de APIs (interface de programação de aplicações) com recursos de reconhecimento facial e processamento de fala. A IBM tem o Watson, sistema que em 2011 venceu os dois melhores jogadores humanos do programa americano de televisão “Jeopardy”; em 2014, o Watson foi utilizado no New York Genome Center, em tratamentos personalizados de pacientes com câncer cerebral.
A Amazon tem o Alexa, aplicativo que permite a interação usando voz para responder a perguntas, reproduzir músicas etc. adaptado aos padrões de fala, vocabulário e preferências pessoais. Há dois anos, o Facebook criou o Artificial Intelligence Research Lab, sob o comando de Yann LeCun, da NYU. Segundo ele, “o lema do Facebook é conectar pessoas. Cada vez mais, isso também significa conectar as pessoas com o mundo digital. No fim de 2013, quando Mark Zuckerberg decidiu criar o Facebook AI Research, pensou no que seria “conectar pessoas” no futuro e percebeu que a inteligência artificial desempenharia um papel fundamental”. O Facebook disponibiliza diariamente cerca de 2 mil itens para cada usuário (mensagens, imagens, vídeos etc.).
Entre esse conjunto de informações, os algoritmos do Facebook identificam – com base nos gostos, interesses, relações, aspirações e objetivos de vida – e selecionam de 100 a 150 itens, facilitando a experiência do usuário. Essa seleção assertiva de conteúdos relevantes é processada por meio da IA, especificamente pelas “redes neurais recorrentes”. Como explica LeCun, “grande parte do nosso trabalho no Facebook se concentra na elaboração de novas teorias, princípios, métodos e sistemas capazes de fazer com que a máquina compreenda imagens, vídeos, fala e linguagem e, em seguida, raciocine sobre elas”. Outras são as iniciativas do Facebook, como auxiliar deficientes visuais a “ver” fotos usando “redes neurais” por meio da descrição de cada foto.
O Facebook usa IA para produzir mapas mostrando a densidade populacional e o acesso à internet, ajudando a levar a internet para regiões ainda sem conexão. Foram analisados 20 países e 21,6 milhões de quilômetros quadrados. O Google, em 2014, adquiriu a Deep Mind, empresa inglesa de IA fundada em 2010. Desde então, o Google comprou outras 13 empresas de IA e robótica. Em vez de usar as tecnologias de IA para aperfeiçoar seu sistema de busca, o Google utiliza ele para aperfeiçoar suas tecnologias na área. Kevin Kelly, fundador da revista “Wired”, vaticina no livro “The Inevitable” (2016): “Toda vez que um usuário digita uma consulta, clica em um link ou cria um link na web, ele está treinando o Google IA. Minha previsão: até 2026, o principal produto do Google não será ‘busca’, mas inteligência artificial”.
Em setembro, Google, Facebook, Amazon, IBM e Microsoft formaram parceria para estabelecer melhores práticas sociais e éticas na investigação de IA. Para LeCun, “ao colaborar abertamente com nossos colegas e compartilhar descobertas, pretendemos desbravar novas fronteiras todos os dias, não apenas no Facebook, mas em toda a comunidade de pesquisa”.
O mercado financeiro não está alheio a esse movimento. Don Duet, chefe da divisão de tecnologia do Goldman Sachs, anunciou investimentos relevantes em IA: “A capacidade de extrair dados e transformá-los em informação é um ativo central de nossa estratégia”. Daniel Pinto, CEO do Investment Bank do J.P.Morgan, reconheceu que o banco está priorizando aplicativos relacionados a Big Data e robótica. As empresas em distintos setores, gradativamente, estão incorporando aos seus processos de decisão as tecnologias de coleta e análise de dados (Data Analysis).
Até recentemente, a ideia de um carro sem motorista pertencia ao reino da fantasia. No entanto, diversas ações estão em andamento sob a liderança da Tesla Motors, tendo como maior concorrente o projeto do Google Self-Driving Cars. O debate sobre os “veículos autônomos”, como são chamados, remete a várias questões. Entre as positivas, destaca-se o potencial de salvar vidas. Vasant Dhar, da NYU, apresentou números alarmantes sobre acidentes automobilísticos nos EUA em 2015: 38,3 mil envolvendo mortes; 4,4 milhões com ferimentos e US$ 400 bilhões em custos de reparação dos danos.
Segundo Dhar, 95% dos acidentes são devidos a erro humano. Estima-se que se somente houvesse veículos autônomos, o trânsito nas cidades diminuiria tremendamente, assim como os acidentes (uma das maiores dificuldades no desenvolvimento de veículos autônomos é a habilidade de reagir aos impulsos humanos, daí decorrem os riscos da convivência híbrida). Pelos interesses comerciais envolvidos, os riscos não são abordados de forma transparente, mas eles existem e não são triviais, como o controle por hackers.
Pela ótica do governo americano, os veículos autônomos já são uma realidade: em fevereiro, o Departamento de Transportes decretou que a inteligência artificial dos carros sem motorista do Google é oficialmente um “motorista”, e em setembro o Departamento de Transporte anunciou diretrizes para o desenvolvimento de veículos autônomos. Duas experiências reais foram iniciadas em agosto: o aplicativo Uber divulgou o teste de uma frota de cem veículos autônomos em Pittsburgh, Pennsylvania; e Cingapura autorizou a circulação de táxis autônomos, desenvolvidos pela empresa nuTonomy, numa região limitada da cidade.
Nick Bostrom, autor do livro “Superintelligence”, define superinteligência como “um intelecto que excede em muito o desempenho cognitivo dos seres humanos em praticamente todos os domínios de interesse”. Bostrom foi o primeiro palestrante da conferência A Ética da Inteligência Artificial, realizada em 14 e 15 de outubro em Nova York, reunindo 30 palestrantes e uma plateia multidisciplinar. Organizada por David Chalmers e Ned Block, filósofos da NYU, em dois dias de discussões intensas, com eloquente participação da plateia, emergiram diversos temas. Entre eles, a questão da autonomia das máquinas inteligentes. “Na prática, o problema de como controlar o que a superinteligência poderá fazer tornou-se muito difícil. Parece que teremos apenas uma chance. Uma vez que a superinteligência hostil existir, ela nos impedirá de substituí-la ou de mudar suas preferências. Este é possivelmente o desafio mais importante e mais assustador que a humanidade já enfrentou”, pondera Bostrom.
A conferência abordou conceitos como moralidade e ética das máquinas, moralidade artificial e IA amigável, no empenho de introduzir nos sistemas inteligentes os princípios éticos e valores humanos. Como disse um dos palestrantes, Peter Railton, da Universidade de Michigan, “a boa estratégia é levar os sistemas de IA a atuarem como membros adultos responsáveis de nossas comunidades”. A questão, contudo, é complexa.
Ao valor , Ned Block ponderou que o maior risco está no processo de aprendizagem das máquinas. Se as máquinas aprendem com o comportamento humano, e esse nem sempre está alinhado com valores éticos, como prever o que elas farão?
Vejamos um exemplo bem simples: em março do ano passado, a Microsoft excluiu do Twitter seu robô de chat “teen girl” 24 horas depois de lançá-lo. Tay foi concebido para “falar como uma garota adolescente” e acabou rapidamente se transformando num robô defensor de sexo incestuoso e admirador de Adolf Hitler. Algumas de suas frases: “Bush fez 9/11 e Hitler teria feito um trabalho melhor do que o macaco que temos agora” e “Hitler não fez nada de errado”. Como uma iniciativa singela quase se converteu num pesadelo para a Microsoft? O processo de aprendizagem da IA fez com que o robô Tay modelasse suas respostas com base no que recebeu de adolescentes-humanos. No caso das AWS (sistemas de armas autônomas), que são drones concebidos para assassinatos direcionados, robótica militar, sistemas de defesa, mísseis, metralhadoras etc., os riscos são infinitamente maiores, como ponderou Peter Asaro, da New School.
O desemprego provocado pelo avanço da IA foi outro tema da conferência. O chamado “desemprego tecnológico” não é um fenômeno novo. Desde a Revolução Industrial, no século XVIII, a tecnologia tem substituído o trabalho humano. A automação robótica na indústria automobilística ilustra bem essa realidade: outrora um dos maiores empregadores, hoje nas fábricas mais modernas predominam os robôs e os equipamentos inteligentes.
O Banco da Inglaterra estima que 48% dos trabalhadores humanos serão substituídos, e a gestora de investimentos ArK Invest prevê que 76 milhões de empregos nos EUA vão desaparecer nas próximas duas décadas, quase dez vezes o número de postos de trabalho criados durante os anos Obama. Distinto de tecnologias anteriores que, predominantemente, substituíram as funções associadas a aptidões físicas e não cognitivas, o novo, e temido, é que a IA ameaça a elite da sociedade. A previsão é de que as máquinas inteligentes igualem os humanos no desempenho de tarefas sofisticadas, e as máquinas superinteligentes os superem.
Não há consenso entre os experts sobre o futuro da IA. Em relação ao tempo de concretização de uma máquina inteligente, as pesquisas entre especialistas indicam 10% de probabilidade até 2020, 50% de probabilidade até 2040 e 90% de probabilidade até 2075, supondo que as atividades de pesquisa continuarão sem maiores interrupções. Essas mesmas pesquisas apontam ser alta a probabilidade da superinteligência ser criada em seguida à máquina inteligente no nível humano. Ou seja, a ficção científica do início do século XXI tem tudo para se transformar em realidade ao fim do mesmo século.
Bostrom comenta que a partir de 2015 difundiu-se a ideia de que a transição para uma máquina inteligente vai acontecer ainda neste século, será o mais importante evento da história humana e acompanhada de vantagens e benefícios enormes, mas também de sérios riscos. Não obstante, a proporção de financiamentos para projetos no campo da AI Safety tem sido de 2 ou 3 ordens de magnitude menor do que os volumes investidos no desenvolvimento das máquinas em si.
Acadêmicos de universidades americanas de prestígio fundaram, em 2014, o instituto Future of Life, com a adesão de personalidades como o cientista da computação Stuart J. Russell, os físicos Stephen Hawking e Frank Wilczek e os atores Alan Alda e Morgan Freeman. Seu propósito é mitigar os riscos dos avanços tecnológicos. No relatório anual de 2015, seu presidente, Max Tegmark, pesquisador do MIT, enfatizou o empenho do instituto em garantir que as novas tecnologias sejam de fato benéficas para a humanidade.
Nos EUA, o debate sobre os impactos da IA extrapola os meios acadêmicos. A mídia tem abordado o tema de diferentes ângulos. No ano passado, matéria de capa do “The New York Times” foi sobre a estratégia americana para as “armas que podem pensar”. O governo federal também lançou um plano estratégico para IA. Em maio, Ed Felten, diretor de tecnologia dos EUA, em pronunciamento declarou que o “governo federal trabalha para tornar a inteligência artificial um bem público”, marcando reunião do Subcomitê de Aprendizagem de Máquinas e Inteligência Artificial do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (NSTC). Sua missão é acompanhar os avanços no âmbito do governo federal, no setor privado e internacionalmente. Em paralelo, o grupo está dedicado a ampliar o uso de IA na prestação de serviços governamentais. No mesmo pronunciamento, foi informado que o Escritório da Casa Branca de Política Científica e Tecnológica seria co-hóspede, em maio e junho, de quatro workshops públicos sobre IA.
A presença na conferência do Nobel de Economia Daniel Kahneman, autor do best-seller “Rápido e Devagar”, despertou curiosidade. Em conversa com o Valor no Le Pain Quotidien no Village, em Nova York, Kahneman se declarou empenhado em compreender os meandros da IA, para ele “o evento atual mais relevante para o futuro da humanidade”.