Brasil de Fato*
Entidades de defesa e fortalecimento da agroecologia, que atuam pela segurança alimentar e nutricional da população brasileira, consideram que o governo eleito de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) terá que implementar medidas articuladas para o combate à fome. É preciso diversidade na produção, respeito à cultura alimentar do país, garantia de terra e água e participação popular.
A percepção é de que o aumento da carestia em território nacional e a volta do país ao Mapa da Fome são processos que caminharam lado a lado com o desmonte da agricultura familiar e o abandono dos povos do campo, promovidos na gestão de Jair Bolsonaro (PL)
Desde a campanha eleitoral, movimentos populares trabalhavam para levantar políticas ligadas à agroecologia e colocadas em prática nos estados e municípios. A ideia era justamente elencar ideias já em andamento e apresentar a candidatos e candidatas o que ainda se mantinha de pé e seguia funcionando, apesar do descaso por parte do governo.
Agora, com Lula eleito e o governo de transição implementado, as organizações elencam uma série de prioridades que precisam ser levadas em consideração.
Em entrevista ao programa Central do Brasil, parceria entre o Brasil de Fato e a TVT a integrante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar, Maria Emília Pacheco, falou sobre o tema.
“Nós continuamos defendendo que não haverá a comida de verdade sem o fortalecimento da agricultura familiar camponesa, dos povos indígenas, das comunidades quilombolas, das comunidades tradicionais. Por isso é fundamental garantir os direitos territoriais, com titulação, demarcação de terra dos povos indígenas com uma reforma agrária popular.”
Novo governo
“Nós temos muita expectativa nesse importante momento histórico que vivemos. Acreditamos que será possível reconstruir um caminho que vínhamos construindo. É bom lembrar que, desde 2012, nós temos uma política nacional de agroecologia e produção orgânica e, anteriormente, desde 2006, uma política nacional de segurança alimentar e nutricional.
Digo isso porque são políticas que se conectam, que dialogam entre si.
Na agroecologia nosso grande objetivo é contribuir na transformação dos sistemas alimentares, baseada na comida de verdade. Uma comida baseada nas culturas alimentares sem veneno. Nossa expectativa é grande com a constituição dos grupos de trabalho de transição, onde nós estamos participando e dialogando.”
Prioridades para a agroecologia
“Nós continuamos defendendo que não haverá a comida de verdade sem o fortalecimento da agricultura familiar camponesa, dos povos indígenas, das comunidades quilombolas, das comunidades tradicionais. Por isso é fundamental garantir os direitos territoriais, com titulação, demarcação de terra dos povos indígenas e com uma reforma agrária popular.
Evidentemente que essa perspectiva se conjuga com o que nós também estamos acreditando que seja bastante importante, que é uma política nacional de abastecimento alimentar. Ao falar de uma política de abastecimento alimentar, nós estamos falando na produção de alimentos.
Para garantir a produção de um alimento saudável, é preciso que seja assegurado o direito à terra, ao território dos povos indígenas, das comunidades quilombolas, da agricultura familiar camponesa. Isso é fundamental.
Por isso é que nós insistimos na articulação com os povos indígenas, no reconhecimento daquilo que está estabelecido na Constituição, que fala também do domínio da terra para as comunidades quilombolas. Precisamos também de uma reforma agrária popular, uma desconcentração da terra no Brasil.
Hoje, 90% da produção no Brasil do agronegócio está concentrada no binômio soja e milho. Precisamos aumentar a área dedicada ao plantio dos nossos alimentos básicos, arroz, feijão, mandioca, que estão em decréscimo do Brasil. É verdade que também reduziu o consumo desses alimentos. Lamentavelmente.
Porque o que precisamos é combinar, ao mesmo tempo, medidas contra a inflação dos alimentos, que garantam apoio, fomento para a produção de alimentos e para o manejo dos nossos frutos e verduras nativas.
Isso é fundamental. Por isso que nós estamos insistindo em uma política nacional de abastecimento alimentar. Significa falar desde a produção, distribuição, consumo. Quando nós falamos da segurança alimentar e nutricional, nós estamos relacionando a qualidade do alimento do ponto de vista também da saúde do solo, da água e da saúde humana .
O Brasil, nos últimos tempos, tem aumentado muito o consumo dos produtos alimentícios ultraprocessados. São aqueles que duram mais na prateleira de supermercado, que nem sabemos o que contém. São aromas artificiais, textura artificial.
Então nós precisamos combinar os programas e políticas públicas que assegurem o direito que consta da nossa Constituição de ter uma alimentação saudável para a população. Quando falamos de combate à fome, nós estamos associando à crítica que temos também a má alimentação. É preciso garantir alimento, mas um alimento de qualidade.
Nós da Articulação Nacional de agroecologia estamos exatamente nesses debates, nessa negociação de políticas.”
Reconstrução do PAA
“Quero lembrar aqui que, falar de abastecimento alimentar, significa reconstruir a história de um programa inovador, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA,) que foi extinto no país, substituído pelo chamado Alimenta Brasil, mas ele não incorpora as várias dimensões do PAA.
O estado brasileiro precisa se comprometer. Ao se comprometer em realizar o direito humano à alimentação, precisa assegurar a compra pública e para alimentação escolar também. Por isso que na articulação de agroecologia, estamos defendendo de imediato, como medida urgente no próximo orçamento de 2023, assegurar um aumento de cerca de 34% para o orçamento da alimentação escolar.
O programa de preço mínimo para os produtos da sociobiodiversidade significa exatamente assegurar um extra para aqueles agricultores agricultoras, comunidades tradicionais que conservam a diversidade dos nossos alimentos. Só temos uma floresta em pé, as matas conservadas exatamente lá onde predominam modos de vida dessas populações.”
Meio ambiente e produção de comida
“Nós vivemos no mundo hoje o que tem sido chamado de uma macro pandemia. Porque temos problemas de mudança climática associada ao crescimento da obesidade, da desnutrição e da fome. Por isso é que no centro do debate de mudança climática devemos insistir que está a questão dos sistemas alimentares, que são insustentáveis.
A devastação ambiental, com o aumento de incêndios criminosos, do desmatamento, isso não é nada sustentável. Isso está na contra corrente dos sistemas alimentares sustentáveis que nós defendemos.
Precisamos também de cautela quando escutamos falarem de novas propostas que são baseadas na natureza. É preciso frear o processo também de financeirização da natureza, de artificialização da natureza.
Há, por exemplo, uma proposta que, para responder à questão ambiental, fala da comida pós agro. É uma proposta totalmente artificial, baseada em proteínas. Nós, num país megadiverso e com uma plurietnicidade dos nossos povos, nós precisamos é de gente com os seus modos de vida no campo, na floresta, nas águas, que assegurem essa biodiversidade que tem uma relação direta com a nossa alimentação.
Somos muito críticos a essa proposta de créditos de carbono. Nós precisamos de um estado que assegure o direito dessas populações terem seus modos de vida de forma autônoma e que continuem levando para a nossa mesa essa diversidade de alimentação. Esse é o princípio chave para nós. O princípio da diversidade.
A diversidade de direito à vida dos povos, do ponto de vista biológico, da diversidade das paisagens, da diversidade também do aspecto nutricional, dos alimentos. Isso é que nos leva a ficar muito atentos e esperançosos no debate sobre o que virá proximamente.”
Proteção e acesso à água
“Uma pesquisa feita pela Rede Brasileira de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional mostrou que a insegurança alimentar está muito associada à insegurança hídrica. Elas se conjugam em muitos lugares, como é o exemplo do semiárido brasileiro.
Mas quero dizer que o semiárido é um lugar de muita potência. É um lugar de muita diversidade também. E o programa cisternas mostrou do que é capaz a população quando tem um apoio. É preciso, urgentemente, voltarmos a reconstituir o programa 1 Milhão de Cisternas.
São muitas tecnologias sociais experimentadas sobre a liderança da articulação do semiárido. Quando falamos de políticas públicas de programas, nós estamos nos baseando no princípio da participação social.
O êxito do programa de cisternas mostrou a capacidade da sociedade civil se organizar de forma coletiva. Não é de forma associativa. São programas que estão baseados no princípio do estoque, de sementes, de água. Então é preciso que, junto ao programa de cisternas, volte o fomento das sementes adaptadas ao semiárido.
No semiárido há dezenas de casas de sementes com nomes muito inspiradores. A Semente da Paixão, Semente dos Avós, Semente da Fatura. É preciso articular o conjunto desses programas na convivência com o semiárido, que rompe com uma relação clientelista. que rompe com a indústria da seca.”
Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.