Se movimentos políticos atravessam o Judiciário, creio ser melhor entendê-los
A agência The Intercept revela que Sergio Moro e Deltan Dallagnol trocavam informações e armavam estratégias para montar processos contra os atores que caíram nas malhas da Operação Lava Jato. Os puros começam a sair às ruas armando fogueiras para fritar juízes, promotores, policiais que passaram dos limites de suas funções.
Espanta-me que até agora não tenham percebido que a Lava Jato foi e ainda é um processo essencialmente político que sempre esteve à beira dos limites de cada profissão. E só tem sentido porque a corrupção, inerente a qualquer política, se institucionalizou entre nós conforme se adensava nosso presidencialismo de coalizão. No entanto, se o movimento é político, não é por isso que se torna automaticamente partidário. Embora Moro e Dallagnol possam ter agido contra Lula e Haddad, a Lava Jato como um todo não poderia ter sido apenas antipetista, porquanto mobiliza centenas de pessoas que não podem ter a mesma escolha partidária. Como era de esperar, para não cometer os erros em que caiu, na Itália, a Operação Mãos Limpas, importava antes de tudo focar o centro do governo e chegar até as periferias. Não é à toa que os ex-governadores do Rio de Janeiro estão na cadeia.
Cabe, ainda, considerar que seguir uma regra jurídica não equivale a resolver uma equação matemática. O ministro Celso de Mello, um dos mais formalistas do Supremo Tribunal Federal (STF), explicou para a jornalista Andréia Sadi que, diante de um caso, primeiro, julga se ele é justo ou não para, depois, encontrar as leis e a jurisprudência que fundam seu julgamento. Se isso contraria os que imaginam que julgar se resolva tão só em peneirar os casos conforme a rede do Código Penal e da Constituição, não seria melhor refletir mais de perto no que significa o próprio julgar? As normas superiores também se ajustam aos casos e sempre entrelaçam momentos subjetivos e objetivos. Por isso a sentença de um juiz passa por várias instâncias, podendo retroceder à primeira se forem descobertos defeitos nos autos ou se novas provas forem apresentadas. Em resumo, o julgamento é um processo coletivo em busca de uma certeza, embora, a despeito de tudo, possa terminar incriminando inocentes.
Por certo existem leis que impedem que juízes conversem com promotores e policiais durante a investigação de casos que eles mesmos irão julgar. Quais são, porém, os limites de uma conversa entre pessoas que convivem no cotidiano e comungam posições políticas semelhantes? Uma coisa é trocar opiniões, outra é um juiz ter relações pessoais com o réu ou com o acusador. Por certo, também, existem leis que proíbem alianças entre juízes, promotores e policiais.
Por muitas vezes os atores da Lava Jato passaram o Rubicão e estrategicamente retrocederam. Não é o caso das prisões coercitivas para provocar delações premiadas? Mas, sem elas, a máfia das empreiteiras ainda não estaria funcionando? E, se os infratores da Lava Jato forem pegos, que também contra eles se apliquem os processos legais. E que sejam compreendidos, ao invés de serem queimados nas fogueiras armadas por inquisições tuiteiras.
Consistindo num movimento político, era inevitável que seus maiores astros fossem atraídos pela política partidária. Era o destino de Moro, era do interesse de qualquer candidato que participasse de seu eventual governo. Não sabemos até que ponto Moro se ajusta ao populismo de Jair (mais) Messias (do que) Bolsonaro. Não me parece que, a despeito de suas origens, seja um conservador empedernido. No entanto, provou que não tem jogo de cintura para enveredar pelos meandros de uma carreira política. Se Bolsonaro sofre do mesmo defeito, ele não tem o auxílio dos filhos articulados e perigosos. O teste definitivo da nova carreira é agora, que está no meio do furacão.
Lembremos que o populismo antidemocrático é um movimento mundial. Como já tem sido dito, de certo modo o povo está contra a democracia. Reforçar suas raízes implica sanear os Três Poderes que a tramam. Não vamos esperar, porém, que o Judiciário seja uma máquina apolítica de julgar. Se movimentos políticos o atravessam, creio ser melhor entendê-los sem esquecer as inovações e os perigos que os espreitam. Somos todos devedores da Operação Lava Jato e deste processo que tem desvendado operações criminosas e ajudado a punir malfeitores. Se um deles escapa de seus laços, não é por isso que vamos decretar uma anistia geral. Se alguém, há dez anos, dissesse que as cúpulas das empreiteiras do País iriam parar na cadeia, com ou sem tornozeleira eletrônica, seria tachado de maluco. Antes de tudo, cabe ajustar as leis para que sejam mais eficazes no combate ao crime institucionalizado.
Esse ajuste, porém, só pode ser eficaz se, aos poucos, superarmos a crise da política contemporânea. Quando predomina o dedo-duro até mesmo nas relações pessoais, amizades de décadas se desmancham. O outro deixa de ser adversário para virar traidor e inimigo. O pior é que neste clima de tiroteio, açulado ainda mais pelo atual governo, os reais problemas do País desaparecem no nevoeiro das provocações midiáticas. Ao grupo mais próximo do presidente Bolsonaro importa regenerar costumes do século 19 e educar patriotas bem comportados.
Cabe ao resto do Ministério configurar, de um ponto de vista conservador, os reais problemas do País, em particular aos dois “superministros”, um deles agora depenado. Em contrapartida, as esquerdas, em vez de tratar de reescrever a história e propalar como foram apeadas do poder por um golpe, que enfrentem cara a cara a crise econômica, social e cultural em que nos metemos.
Nota: agradeço a Lidia Goldenstein e a Marcio Sattin por terem colaborado neste artigo
* José Arthur Giannotti é professor emérito de filosofia da USP e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)