Otimismo com o novo governo é grande, mas a economia marcha muito lentamente
Todos aparentemente estão de acordo. Na verdade, ninguém se entende! A reforma da Previdência é um desses temas em que todos fingem estar afinados, quando a desafinação é a regra. A orquestra não sabe tocar. Acontece com ela o mesmo que a noção de ser em Aristóteles: ela se diz em múltiplas acepções.
E essas múltiplas acepções são disputadas por diferentes grupos sociais, corporativos e políticos, cada um defendendo suas próprias posições, se não privilégios. Nos discursos, todos proclamam que defendem o bem do Brasil, quando, de fato, defendem o seu bem particular, frequentemente em dissintonia com o bem público.
Logo, no momento de verificarmos com mais atenção a suposta aceitação geral da reforma da Previdência, constatamos que os diferentes agentes e atores estão falando de coisas diferentes, embora utilizem as mesmas palavras. Assim, haveria um aparente consenso quanto à necessidade dessa reforma, vital para salvar o País da insolvência fiscal e do baixo crescimento econômico daí decorrente. Contudo, quando descemos aos detalhes sobre o que cada um entende por reforma da Previdência, profundas divergências irrompem.
O aparente consenso reinante é, portanto, ilusório. Ninguém pôs ainda os seus respectivos exércitos em campo. A guerra, na verdade, nem começou. Os setores mais privilegiados do funcionalismo público, do Executivo, do Legislativo, do Judiciário e do Ministério Público continuam aferrados a seus privilégios e não mostram a menor disposição de renunciar a eles. E são setores que sabem lutar por seus privilégios como se defendessem os interesses dos mais desfavorecidos.
O projeto do governo cometeu, entre outros erros relativos aos mais desfavorecidos, o de mexer no valor do Benefício de Prestação Continuada (BPC), que passaria de um salário mínimo para R$ 400. Deveria ter evitado esse erro, que bastante custou ao projeto do governo Temer.
Assim fazendo, abriu uma brecha para que os que usufruem privilégios possam dizer que estão defendendo os menos privilegiados. A mensagem da reforma de que combateria os mais privilegiados, embora o faça também, sai, de pronto, enfraquecida. O governo perde em narrativa, enquanto os seus opositores elaboram um discurso que possa beneficiá-los diretamente.
O presidente Bolsonaro, em café da manhã na quinta-feira passada, foi particularmente sensível e atento a esse ponto, sinalizando imediatamente, em resposta a uma pergunta, que estaria disposto a revisar esse ponto. Em linguagem popular, estaria disposto a tirar logo o bode da sala.
Acontece que esse não é um bode qualquer! Ele diz respeito a idosos e aos mais desfavorecidos, que não deveriam entrar num cálculo apenas matemático, pois se trata de algo que para muitos é uma questão de vida ou morte. Uma maior tributação dos mais privilegiados mais do que compensaria essa subtração! Os mais favorecidos pagariam pelos mais desfavorecidos.
Acontece que ninguém quer abrir mão de seus privilégios, apresentados como se fossem direitos inalienáveis. Todos estão de acordo, mas para tirar recursos dos outros, e não de si mesmos. A melhor reforma seria a que valeria para os outros!
Reflexo desse desacordo de fundo se expressa na questão da contribuição dos militares. Ela foi introduzida para, aparentemente, equalizar os diferentes grupos do funcionalismo, apesar de ser de natureza distinta. No funcionalismo federal, os militares são os que recebem os menores salários, estando em clara desvantagem ante os seus colegas de outros setores. Além de ganharem pouco em relação aos demais, foram severamente atingidos nos últimos governos.
De repente, o processo de tramitação legislativa da reforma sofre a ameaça de ser interrompido se um projeto sobre os militares não for enviado em curto prazo. É evidente que há várias distorções que devem ser corrigidas quanto à aposentadoria dos militares, por exemplo, eles podem passar à reserva entre os 40 e os 50 anos. Tal conta não pode fechar! Uma revisão da carreira militar também deve ser feita, com o aumento de seus soldos, equiparando-os, aí sim, aos de outros setores do funcionalismo.
Há aí uma questão política envolvida. Parlamentares e partidos estão procurando desviar a atenção do que realmente conta, ocultando suas divergências, concentrando-se num setor do funcionalismo de menores salários, para então dizerem que farão a verdadeira reforma. Trata-se de uma diversão no sentido pascaliano: deixar de pensar no que realmente importa para focar no acessório e secundário, que ganha, assim, uma grande dimensão.
Também de nada adianta, no atual contexto, apresentar a proposta do governo Bolsonaro como se fosse, em valores, muito diferente da proposta do governo Temer. A nova formulação está no começo de sua tramitação legislativa, enquanto a anterior já foi finalizada. No início todas as propostas são ousadas, mas logo sofrem a desidratação própria das negociações. E o processo de desidratação está apenas começando, com os distintos grupos sociais, corporativos e políticos procurando conservar os seus privilégios. E esses setores têm votos na Câmara dos Deputados e no Senado!
O atual governo decidiu apresentar a sua própria proposta para se diferenciar do anterior, apesar de as semelhanças entre os projetos serem muitas. É da vida política, cada governo almejando dizer sua qualquer mudança. Procura-se carimbar como nova a proposta do novo governo, embora, muito provavelmente, seus resultados, ao final, tendam a coincidir.
Acontece que o Brasil não pode mais esperar muito. O otimismo com o novo governo é grande, mas a economia marcha muito lentamente, com o desemprego em alta. Não podemos esquecer que o País está bailando à beira do abismo. E a música não está nada afinada.
*Professor de filosofia na UFRGS.