Demétrio Magnoli: Marielle, um memorial impossível?

A vereadora teria sido executada por ser mulher, negra ou oriunda da favela. Por essa via, converte-se magicamente o crime político em crime identitário.
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

A vereadora teria sido executada por ser mulher, negra ou oriunda da favela. Por essa via, converte-se magicamente o crime político em crime identitário

Os três PMs mortos no Rio num único dia, a quarta, 21 de março, os 30 assassinados em menos de três meses de 2018 e os 134 exterminados em 2017 são cadáveres anônimos, ao contrário de Marielle Franco. Longe das luzes e câmeras, estão também as 1.124 pessoas mortas pela polícia no ano passado, supostamente por resistência a intervenções policiais. A distinção entre a vereadora do PSOL e todos os demais tem sentido, pois a única vítima célebre foi, ao que tudo indica, alvo de um crime político. Mas o contraste entre luz e sombras também sinaliza a naturalização da barbárie que está em curso. É em nome de todos os mortos que seria preciso erguer um memorial a Marielle. Nunca, porém, uma estátua em mármore disponível para selfies de turistas ávidos por estilhaços da sofrida, folclórica “história dos nativos”.

“Tem que pagar por esse crime bárbaro”, disse o ministro Raul Jungmann, comprometendo a intervenção federal com a célere apuração dos nomes dos “executantes” e dos “mandantes”. Se a promessa for cumprida — especialmente na parte dos “mandantes”, sejam “de dentro ou de fora da polícia” — surgirá o esboço do memorial certo. Mas faltará ainda a substância: a separação radical entre o Estado e o crime organizado, por meio de uma profunda reforma da polícia. O passo decisivo depende menos de Jungmann ou do governo federal que da articulação dos partidos e da sociedade civil. O memorial jamais será erguido sem um consenso mínimo entre as principais forças políticas do Rio.

Uma campanha odienta nas redes sociais, estimulada por partidários de Jair Bolsonaro, almeja matar Marielle pela segunda vez, sugerindo uma associação entre a vereadora e o Comando Vermelho. No polo oposto, o PSOL e o PT reduzem a vítima à condição de cadáver útil, isto é, de um veículo inerte propício à difusão de discursos sectários. No lugar de alianças políticas em torno de metas comuns, os dois partidos entregam-se a um jogo de espelhismos que só interessa ao “bolsonarismo” — e, por extensão lógica, à facção bandida da polícia.

A narrativa psolista emana da ideia, caricatural e populista, de uma guerra entre o Estado e o “povo da favela”. No discurso de inúmeros porta-vozes do partido, Marielle é vítima da intervenção federal, que seria conivente com a polícia-bandida e as milícias. A vereadora teria sido executada por ser mulher, negra ou oriunda da favela. Por essa via, converte-se magicamente o crime político em crime identitário — e, como consequência, desvia-se o foco das associações criminosas entre a polícia, as milícias e o narcotráfico. Chamemos isso de “imobilismo revolucionário”: no fundo, o PSOL está dizendo que nada pode ser feito enquanto ele mesmo não chegar ao poder, conduzindo o povo oprimido à redenção final.

A narrativa petista, por sua vez, emana da ideia do “golpe”. Dilma Rousseff: “o que aconteceu com a Marielle Franco faz parte de um dos atos deste golpe que desencadearam no Brasil desde 2016. Por que eu digo que faz parte? Porque o golpe não é um ato, o golpe é o processo.” Num ápice agônico de oportunismo, o PT pretende convencer-nos de que Marielle é Dilma e é Lula, de que os responsáveis pela execução da vereadora são o impeachment e a sentença condenatória do TRF-4. O discurso petista esconde, numa paisagem de brumas, o colapso da segurança pública no Rio e o fracasso da política das UPPs. Chamemos isso de “imobilismo eleitoreiro”: no fim, o PT está dizendo que nada pode ser feito enquanto ele mesmo não retornar ao Planalto.

A estátua em mármore, pontilhada por placas de metal exibindo palavras de ordem revolucionárias ou slogans eleitorais — isso é tudo que propõem o PSOL e o PT. Mas, desgraçadamente, os dois partidos são indispensáveis para a produção de um consenso democrático no Rio capaz de isolar a parcela da elite política associada ao crime.

“Crime organizado” distingue-se de criminalidade comum pela circunstância de que é um fruto da política. O crime se organiza quando agentes públicos estabelecem pactos de poder e negócios com facções criminosas. A força territorial do narcotráfico e das milícias atesta o grau de degradação da polícia, que deixou de ser um instrumento de manutenção da ordem pública para servir a diversos interesses privados em conflito. A intervenção federal restrita à segurança pública é insuficiente para restaurar a ordem. O nó precisa ser desatado na esfera política, por meio da unidade das forças democráticas em torno de um programa comum de reforma policial.

“Por Marielle, eu digo não, eu digo não à intervenção!”, gritam os militantes psolistas, sacrificando o diálogo no caldeirão fervente da ideologia. A intervenção federal não resolve, por si mesma, a questão do colapso da segurança pública, como sabem os chefes militares experimentados. Mas a rejeição do PSOL e do PT à política democrática condena o Rio a depositar suas esperanças no improvável sucesso da operação militar. Nada de memorial, uma estátua na praça e uma cova rasa para os mortos sem nome — é só isso que teremos?

* Demétrio Magnoli é sociólogo

 

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