Um ano sem aula cobrará preço devastador em vidas intelectuais e profissionais amputadas
Vejo, melancólico, as fotos de Adriano Vizoni, das escolas públicas fechadas (Folha, 27.jul). Lembro das primeiras escolas em que dei aulas, em Carapicuíba e Caucaia do Alto, nos idos de 1978. A placidez com que o Brasil encara a interrupção eterna do ano escolar é um retrato em preto e branco do desprezo nacional pelos pobres —e pela educação.
Cito os estudos científicos sobre as escolas básicas suecas, que nunca fecharam, e alemãs, reabertas em maio? Eles mostram o risco irrisório do retorno parcial às aulas, sob os conhecidos protocolos sanitários, durante o declínio das infecções. Menciono a orientação do Centro de Controle de Doenças dos EUA —são médicos, não agentes de Trump— de próximo retorno às aulas (bit.ly/30ac7AZ)? Melhor não.
“Você quer matar as crianças, os professores, os pais e os avôs!”; “arauto da necropolítica!”; “genocida!”. As réplicas rituais surgem, aos gritos, de quem jamais lerá estudo algum —mas não cansa de empregar a palavra “ciência”.
Falar em escolas já produziu até uma nova especialidade acadêmica. Um matemático da FGV criou um modelo profético que garantia a morte de milhares de crianças em poucas semanas de aulas. Depois, voltou atrás, alegando “empolgação”, reconhecendo equívocos de comunicação e estratosféricas incertezas estatísticas. Com o vírus, ao lado da Matemática Pura e da Aplicada, nasceu a Matemática Empolgada.
“Uma única vida perdida”, porém, seria suficiente para manter as escolas fechadas, concluiu o matemático, jogando no lixo seu monumento estatístico em ruínas. De acordo com o modelo mental hegemônico entre governantes e especialistas fechados na bolha da alta classe média, crianças sem aula foram isoladas em tubos de vácuo: não brincam nas ruas, não retornam às suas casas e, portanto, não transmitem o vírus.
Sindicatos de professores concorrem, em corporativismo, com associações de policiais. A simples menção à hipótese longínqua de reabertura escolar deflagra ameaças de greves. Dirigentes das entidades querem evitar a volta às aulas até o advento da vacina. O fenômeno é mundial: um manifesto do sindicato de professores de Los Angeles lista dezenas de pressupostos para a reabertura, inclusive a implantação de um sistema universal de saúde nos EUA. Esqueceram de exigir a prévia abolição do papado.
O Plano São Paulo prevê a retomada de aulas apenas um mês depois de todas as regiões atingirem em uníssono a etapa amarela. Por que uma escola paulistana não pode reabrir enquanto ainda pesam restrições sanitárias em Araçatuba? João Gabbardo, do centro de contingência, explicou que o obstáculo não decorre de critérios epidemiológicos, mas de uma norma de uniformidade da Secretaria de Educação.
De fato, um outro vírus, ainda mais contagioso, controla os portões escolares. O nome dele é política eleitoral.
Os pais têm medo, um sentimento compreensível, em parte derivado da “empolgação” jornalística. Nos dias em curso, a notícia lateral de que a França foi obrigada a fechar novamente algumas dezenas de escolas soterra a informação sobre a reabertura em segurança de 40 mil escolas. Nesses tempos, apesar do elogio editorial à ciência, um matemático empolgado ganha as manchetes que ignoram pesquisas epidemiológicas baseadas em evidências.
Na escola, as crianças aprendem a aprender. Um ano sem aula cobrará preço devastador em vidas intelectuais e profissionais amputadas. Bons professores sabem disso —e não precisam curvar-se às ordens dos chefões sindicais.
Como os médicos e enfermeiros, eles têm o dever cívico de levantar as mãos, declarando-se prontos a enfrentar riscos muito menores. De minha parte, vai aqui uma mensagem de voluntariado ao governo estadual: estou pronto a voltar a meus 19 anos, substituindo professores recalcitrantes em qualquer escola pública —até a vacina.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.