Demétrio Magnoli: ‘Uma coisa profunda…’

Ciro Gomes aventurou-se na selva da ciência política para decifrar o fenômeno Bolsonaro. “Ele representa uma coisa profunda que nem ele imagina o que significa. Representa a negação da política e da democracia; a vontade de tocar fogo para ver se nasce alguma coisa no lugar.”
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Ciro Gomes aventurou-se na selva da ciência política para decifrar o fenômeno Bolsonaro. “Ele representa uma coisa profunda que nem ele imagina o que significa. Representa a negação da política e da democracia; a vontade de tocar fogo para ver se nasce alguma coisa no lugar.” Ciro constata a ineficácia da linha usual de crítica da “nossa elite”, que “resolveu tutelar a sociedade”. O Brasil profundo que se reconhece em Bolsonaro é autoritário e conservador — e está muito irritado. Bolsonaro “está aí” precisamente “porque é homofóbico” e “porque é misógino”.

A “coisa profunda” não é fascismo, um termo que a nossa esquerda utiliza como quem toma sorvete, esvaziando- o de seus significados. Bolsonaro tem algo entre um quinto e um quarto das intenções de voto não porque expresse algo novo, mas justamente por trazer à tona, em meio a uma crise multidimensional, alguns dos materiais subterrâneos mais persistentes da sociedade brasileira. Na sua candidatura, emergem “coisas profundas” que vão bem além do conservadorismo social tão abominado pela “nossa elite tutelar”.

Bolsonaro ingressou no negócio da política há três décadas, como vereador e, em seguida, deputado federal. Dos seus cinco filhos, três são políticos profissionais. O autoproclamado outsider é, de fato, um típico insider. Suas origens militares não passam de uma cicatriz periférica. O ex-capitão com ambições sindicalistas, um desordeiro avesso à hierarquia militar, evaporou no passado distante. Mas a escolha do general Hamilton Mourão como vice de sua chapa converte a candidatura civil em algo um tanto diferente. Por meio dela, a política bate às portas dos quartéis.

Mourão clamou pela “intervenção militar” e, por isso, foi gentilmente transferido à reserva. Daí, por aclamação, sagrou- se presidente do Clube Militar, o que o distingue de tantos “generais de pijama”. O Clube Militar tem forte audiência nos quartéis, inclusive na alta oficialidade. A ideia de que a política civil é uma recorrente doença degenerativa e de que a saúde nacional depende de cirúrgicas intervenções militares está gravada no mármore da nossa história republicana. A chapa Bolsonaro/ Mourão exprime, entre tantas “coisas profundas”, o impulso da “restauração da ordem” por meio da baioneta.

Na transição à candidatura presidencial, sob a influência de oráculos amargurados, Bolsonaro substituiu o manto de ultranacionalista, nostálgico do estatismo militar, pela fantasia de fanático ultraliberal. A passagem de lagarta a borboleta exigiu a “intervenção civil” de Paulo Guedes, um porta-estandarte do “Estado mínimo”. O economista- guru fez a vida nas salas da academia e nos escritórios de planejamento estratégico de bancos de investimentos. Transportado desses círculos etéreos para a dimensão pragmática das políticas públicas, esclareceu involuntariamente a antiga relação que a nossa direita mantém com a doutrina liberal.

Num governo Bolsonaro, Guedes seria alçado ao trono de czar da Economia, unificando sob seu comando os ministérios da Fazenda, do Planejamento e da Indústria e Comércio. O pretendente a Colbert prometeu conservar a autonomia do Banco Central, mas explicou que o BC ficaria “alinhado” às diretrizes de seu superministério. Não satisfeito, acrescentou que as instituições financeiras federais, como o BB e a CEF, também se dobrariam à sua vontade (assim como, recorde- se, a Petrobras e a Eletrobras foram curvadas aos desejos do lulismo).

Temos, na prática, o desenho de uma ditadura econômica que subordinaria a política monetária e os mecanismos de crédito público às mutáveis conveniências do presidente de turno. No passado, o “laissez-faire à brasileira” conviveu alegremente com o sistema escravista, os monopólios comerciais e os subsídios públicos aos amigos do rei. Sua versão mais recente, assinada por Guedes, é Nicolás Maduro com sinal invertido.

Bolsonaro imita Trump em tudo, exceto na tintura do cabelo. Trump, porém, tornou-se candidato do Partido Republicano, enquanto Bolsonaro só tem um certo PSL. A diferença é “uma coisa profunda” — e um conforto e tanto.

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