O colapso econômico cobra vidas
Os secretários estaduais de Saúde bateram a porta na cara do agora ex-ministro Nelson Teich. Diante de uma proposta de diretrizes sobre níveis de distanciamento social, responderam que, enquanto a curva da epidemia sobe, não é hora de discutir o assunto. Nossa polarização política reflete-se como guerra retórica entre dois extremismos. Num polo, Bolsonaro e seus lunáticos fantasiam-se de defensores da economia e dos empregos. No extremo oposto, configura-se um fundamentalismo epidemiológico que, vestido com a roupagem da ciência, exibe-se como o exército da vida. A Suécia oferece uma alternativa à dicotomia irracional.
O país escandinavo rejeitou a polaridade filosófica vida versus morte e sua tradução estratégica: saúde pública versus economia. Distinguindo-se de quase toda a Europa, navega por medidas brandas de isolamento social que não abrangem quarentenas extensivas. O fundamentalismo epidemiológico acusou-a de renegar a ciência, cotejou sua taxa de mortalidade por Covid (34 por 100 mil) com a de seus vizinhos (Noruega: 4,3; Finlândia: 5,1) e, num julgamento sumário, declarou-a culpada de desprezo pela vida.
O governo sueco não classificou a doença como “uma gripezinha”, recusando o negacionismo. Como o resto da Europa, definiu o objetivo de “achatar a curva”. Mas modulou a estratégia para o longo prazo, estimando que a vacina tardará. Aceitou, portanto, taxas maiores de óbitos imediatos, em troca da mesma mortalidade que os outros no horizonte da imunidade coletiva. No plano epidemiológico, um veredicto justo deve aguardar o momento redentor da vacinação em massa.
O parâmetro sueco não é suprimir o vírus pelo bloqueio social, mas evitar as mortes evitáveis — ou seja, preservar a capacidade hospitalar de atendimento de casos graves. Nesses dias, após “achatar a curva”, os governos europeus começam suas reaberturas, ainda em meio a milhares de contágios. Todos rendem-se ao mesmo parâmetro — e, claro, enfrentam a voz indignada dos anjos da vida.
Os anjos estão errados, por motivos pragmáticos e filosóficos. O colapso econômico cobra vidas. A depressão mundial lançará cerca de 130 milhões de pessoas na vala da fome. O desemprego crônico, com seu cortejo de alcoolismo e opioides, corta a expectativa de vida em mais de cinco anos. Por que a vida de um faminto ou de um desempregado vale menos que a de um infectado pelo vírus?
A Suécia levou em conta um valor que escapa ao domínio epidemiológico: as liberdades civis. Quarentenas prolongadas achatam direitos, tanto quanto a curva de contágios. A liberdade ou a segurança? No caso da Aids, que matou 32 milhões, jamais restringimos as atividades sexuais, impondo legalmente testagens aos parceiros para evitar a difusão do vírus. A filosofia moderna nasceu com a declaração do direito à revolta contra governos tirânicos. A escolha de viver em liberdade deflagra rebeliões, que causam conflitos e mortes.
No plano dos valores, quarentenas justificam-se pela interdição ética fundamental de deixar pacientes morrerem sem tratamento apropriado. Itália, Espanha e França recorreram ao lockdown precisamente diante desse abismo. A Alemanha, que não chegou perto dele, preferiu uma quarentena moderada — e começa a reabrir em nome dos “direitos constitucionais”.
O exemplo sueco não indica que os italianos erraram — e não serve para moldar as respostas brasileiras a uma curva exponencial. Por outro lado, é a bússola mais precisa para nortear o debate, em todos os lugares, sobre lockdowns, quarentenas e flexibilizações. A epidemiologia militante, iracunda e intolerante, não tem o direito de invocar uma aliança preferencial com a vida, rotulando como arautos da morte os que ousam contestar suas receitas.
Teich foi elevado por Bolsonaro ao ministério com a missão de fabricar mais desordem, sabotando nossas últimas oportunidades de coordenar o combate à epidemia. Mas ele sabotou o sabotador, ao oferecer um esboço de diretrizes comuns. Os secretários de Saúde fizeram baixa política ao recusar a mera discussão da proposta. Ganham aplausos indevidos de fanáticos do bem.