Eu, que furo a quarentena, sou pretexto para você desviar tua indignação
Li a tua carta a um não confinado, na Folha (9 de maio). Vesti a carapuça e o jornal abriu espaço para essa minha resposta. Você é um cara bacana, ama o planeta, valoriza a vida, me despreza. Concordo com teus argumentos sobre a necessidade de confinamento.
Só não pratico o que acho certo: furo a quarentena todos os dias. Coerência é coisa de bacana, num outro sentido.
Sou “zé povinho”, como você escreveu. E, pior, não estou entre os mais pobres. Tenho um estabelecimento (não direi de que tipo, nem onde fica), que toco com minha mulher e dois funcionários. Fechei por três semanas, cumprindo a ordem do governador. Reabri, clandestinamente, para evitar a falência. Enquanto você vê Netflix e até pinta, passo o dia no Whats, marcando hora com clientes. Levanto a porta, eles entram, abaixo rápido. Um “ser antissocial”, na tua síntese bacana.
Você me odeia; eu te invejo. Suspeito que o epidemiologista mencionado na tua carta, aquele da quarentena por “mais de um ano”, tem salário garantido na universidade ou em cargo público, com grana do meu imposto. A moda dos bacanas com renda certa é posar de bacana diante dos sem renda certa. O governo declarou-me “não essencial” e proíbe que eu ganhe a vida, mas não me dá um tostão. Diz que devo salvar vidas, mas não salva a minha. Bacana, né?
Ciência! Consciência! Não sou doutor, mas entendi a história do vírus. Nem precisa recomendar pra eu lavar as mãos. Sei que as UTIs funcionam no limite. Um senhor de idade, vizinho, morreu de Covid-19. Tinha problema no coração, mas parecia bem.
Mesmo assim, nada –nenhum gráfico ou imagem chocante– me convence a transferir minha família para a pobreza. Tudo que tenho é meu negócio, que paga as contas de casa, a faculdade do meu filho, o salário dos auxiliares.
“Economia, consertamos depois”, né? Juntos, no mesmo barco, sem individualismo. Ok: você topa dividir tua renda comigo?
Não sou tão desinformado como você imagina. Bolsonaro, já vi, não cuida da saúde de todos nem protege a renda do “zé povinho”. Seu companheiro de jornada é o caos –ou seja, eu. O Capitão Morte investe no meu desamparo para desmoralizar a quarentena. Tem a cooperação involuntária de um prefeito que substituiu aglomerações de carros por aglomerações de gente que não possui vários carros.
Sou o caos, mas estou na companhia de muito bacana. Você, a ordem, quer chamar a polícia sanitária para fechar meu negócio. Parabéns: salva vidas, às custas da minha.
Quem lê tanta notícia? Um certo Daniel Balaban, do Programa Mundial de Alimentos da ONU, calcula que 5,4 milhões de brasileiros serão rebaixados à pobreza extrema. Conheço um que já foi, meu primo.
Jardineiro, mora na favela. Dois meses parado: vocês, bacanas, não querem “gente estranha” em casa. A mulher, doméstica, ainda empregada, segura as pontas. Chegaram, finalmente, os tais R$ 600. Dois moleques sem escola: o menor não sai da rua; o maior vai hoje a um baile funk. Meu filho vai com ele. Vetores de contágio, é assim que agora se fala, não é?
“‘Lockdown’ já!”, você exige, com milhares de cadáveres de razão. Pergunto, porém, de que marca? Europeia, chinesa ou brasileira? Não fiz faculdade, como você, mas acho que nada vem sem embalagem.
O “lockdown” europeu precisa da Europa toda: sociedades de classe média com governos funcionais. O chinês, que você elogia, precisa da China inteira: ditadura total, o governo acima de todos. Sobra o brasileiro, me engana que eu gosto, aplicado em São Luís: a cidade dividida entre a quarentena dos bacanas e o fuzuê dessa gentinha sem Netflix.
Sei que eu, não confinado, te atrapalho. Mas, pense bem, também ajudo: minha existência, essa incômoda presença, fornece a você o pretexto perfeito para desviar tua indignação. Não é culpa deles, os governantes. É minha.
Assino: um cidadão transgressor. Volto ao Whats.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.