O brexit veicula uma nostalgia imperial: o desejo de retroceder à ‘idade de ouro’
Donald Trump celebrou a elevação de Boris Johnson à chefia do governo britânico qualificando-o como “um Trump britânico”. Seu amigo do peito no Reino Unido é Nigel Farage, o líder da direita nacionalista e o mais fanático entre os arautos do brexit. Johnson prometeu aos conservadores derrotar tanto Farage quanto Jeremy Corbyn, o esquerdista que comanda o Partido Trabalhista. Mas Trump profetiza que Farage “trabalhará bem” com o novo primeiro-ministro. Faz sentido: o Partido Conservador só elegeu Johnson depois de se converter numa seita de fundamentalistas do brexit.
“Pense em Margaret Thatcher com cabelo indomável” —assim, Newt Gingrich, o direitista ex-líder parlamentar do Partido Republicano enalteceu Johnson, oferecendo uma oportunidade inigualável para os caricaturistas. O próprio Johnson exibe-se como um “modernizador do thatcherismo”, mas seu heroi é Winston Churchill. De qualquer modo, na carruagem retórica do brexit, os dois mais célebres chefes de governo conservadores do século 20 foram recrutados como ícones da cisão britânica com a União Europeia. É história de cartolina: um conto de fadas para ninar crianças de colo.
Thatcher nunca foi uma europeísta, mas aprendera as lições do passado e, no referendo sobre a adesão britânica à então Comunidade Europeia, em 1975, fez campanha pelo “sim” (enquanto, por sinal, Corbyn empenhava-se pelo “não”). Churchill viveu em outra época, quando a bandeira britânica ainda tremulava sobre colônias espalhadas por todos os continentes. Uma de suas sentenças clássicas —”Se o Reino Unido precisar escolher entre a Europa e o mar aberto, deve sempre escolher o mar aberto”— foi pronunciada em 1944 e, hoje, funciona como uma espécie de hino do brexit. Mas a citação é um recorte esperto: a apropriação política de um estilhaço da história.
Churchill não era um inglês provinciano. Em outubro de 1942, após a primeira vitória militar britânica, na batalha de El Alamein, escreveu ao ministro do Exterior, Anthony Eden, que “enxergo à frente um Estados Unidos da Europa no qual as barreiras entre as nações serão bastante reduzidas”. Ali, encontra-se a semente da ideia explicitada no Discurso de Zurique (1946), que pode ser interpretado tanto como a inauguração da Guerra Fria quanto como uma conclamação à unidade da Europa. E, no verão de 1950, Churchill qualificou como “atitude miserável” a recusa do governo trabalhista de Attlee em participar das negociações do Plano Schuman, embrião da Comunidade Europeia.
Johnson prometeu que seu governo marcará o “início de uma nova idade de ouro”. A “idade de ouro” do Império Britânico tinha ficado para trás quando Churchill dirigiu sua áspera crítica a Attlee. Naquela hora, três anos depois da independência da Índia, a Europa já surgia como destino inevitável do Reino Unido. E, como Thatcher, um quarto de século mais tarde, Churchill entendia o significado político do projeto europeu. A unidade da Europa, eles sabiam, era uma ferramenta para conter a URSS e esculpir, no lugar da “Europa alemã” sonhada por Hitler, uma “Alemanha europeia”.
O brexit obedece a dois comandos ideológicos. De um lado, veicula uma nostalgia imperial: o desejo de retroceder o relógio à “idade de ouro”. De outro, exprime o nacionalismo xenófobo de uma Inglaterra insular, avessa ao cosmopolitismo e à imigração. Na base da ruptura com a União Europeia encontra-se a crise geral do sistema político britânico e a crise singular que ameaça desmantelar o Partido Conservador.
“Não compartilho a opinião otimista que ele tem de si mesmo”. O novo primeiro-ministro foi recebido com sarcasmo por Dominic Grieve, da rarefeita ala europeísta do Partido Conservador. O “charlatão”, na definição de Grieve, é o agente perfeito para consumar o desastre do brexit.
“Um Trump britânico” —nessa, Trump acertou.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.