A sala de aula não é pátio de diversões de ideólogos ou doutrinadores
Bruno Garschagen, o assessor do (até agora) ministro Ricardo Vélezexonerado pela Casa Civil, tem ao menos uma qualidade: a capacidade de produzir uma autocrítica devastadora, ainda que involuntária. “Quando os antissocialistas mimetizam a mentalidade e a ação política do inimigo, tornam-se o espelho da perfídia”, escreveu o “olavete” num artigo de jornal velho de quase dois anos. Seria preciso acrescentar que, quando tentam utilizar o poder de Estado para escrever uma “história oficial”, os autointitulados liberais revelam a sua face autoritária e antiliberal.
Descubro que o mesmo Garschagen é autor do livro “Pare de Acreditar no Governo”. Não o li, mas concordo com o comando do título, que tem validade geral e serve como advertência de singular relevância no caso do governo Bolsonaro. Esses “antissocialistas” não só mimetizam a “ação política” do “inimigo” como a conduzem para além de limites que o PT jamais ultrapassou. O MEC é a prova disso.
Vélez saltou da mera bufonaria —a solicitação de vídeos propagandísticos de escolares entoando o hino nacional— ao exercício abusivo da autoridade. O ministro, que oscila entre o apego canino ao cargo e a fidelidade ao Bruxo da Virgínia, anunciou uma revisão “progressiva” dos livros escolares talhada a apagar a ditadura militar do registro histórico. A missão do MEC, explicou, é “preparar o livro didático de tal forma que as crianças possam ter a ideia verídica, real, do que foi a sua história”.
O governo exige que acreditem nele. Para isso, usará o poder de distribuir livros escolares, a palavra legitimada do professor e a prerrogativa de produzir o exame nacional de acesso às universidades federais.
Os poderes estatais adoram moldar as crianças de modo que elas repitam as palavras e os gestos dos governantes. A “história oficial” tem longa história escolar, que se estende das narrativas nacionalistas do século 19 até o contemporâneo revisionismo separatista catalão, passando pelos sinistros artigos de fé dos totalitarismos stalinista e nazista. O Brasil não ficou imune à politização da escola.
Sob o lulopetismo, o MEC engajou-se a fundo numa revisão “progressiva” dos manuais escolares com a finalidade de adaptá-los aos dogmas da doutrina racialista. A nação deveria ser descrita, nas aulas de História e Geografia, como uma confederação de etnias ou “raças”. Nossas extensas miscigenações precisariam ser reinterpretadas como uma lenda criada para ocultar um racismo mais letal que os dos EUA da discriminação oficial ou da África do Sul do apartheid. O movimento abolicionista, uma ampla luta social que abrangeu brancos e negros, teria que escorrer pelo ralo destinado aos mitos. Vélez mimetiza o PT, mas sem a tintura “bondosa” do revisionismo racialista.
A operação lulopetista fluiu suavemente, prescindindo de rudes declarações ministeriais, maquiada como releitura acadêmica do passado. Obteve algum sucesso, graças à cumplicidade de comissões de docentes universitários militantes e à bovina obediência de editoras sempre prostradas diante da pilha de dinheiro das compras públicas. Vélez, porém, fracassará. A “verdade” estatal que ele tenta veicular choca-se com a resistência da opinião pública, dos historiadores e dos professores. Só um regime de força conseguiria impor a negação do caráter golpista do 31 de Março e da natureza ditatorial dos governos militares.
As democracias aprenderam a respeitar a autonomia das escolas. Nelas, há muito, os governos se abstêm de formular a “ideia verídica, real” da história que deve ser ensinada. O sucesso relativo do PT e o inevitável fracasso de Vélez funcionam como sinais de alerta: a sala de aula não é pátio de diversões de ideólogos ou doutrinadores. Pare (mesmo) de acreditar no governo, pois o pior professor ainda é melhor que o discurso do poder estatal.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.