Ao planejar a ofensiva, Bolsonaro desenha também o caminho da retirada
Sabe-se que, historicamente, Bolsonaro não é um, mas dois. A narrativa convencional registra uma ruptura radical. O capitão turbulento que evoluiu como parlamentar de convicções nacional-estatistas converteu-se, no umbral de sua campanha presidencial, ao manual econômico do ultraliberalismo.
Sob essa luz, um Bolsonaro sucedeu ao outro, abandonando o personagem original numa reentrância do passado. Contudo, a montagem do governo conta-nos uma história diferente, sugerindo a hipótese de que os dois Bolsonaros convivem num mesmo indivíduo dilacerado entre personas contraditórias.
Paulo Guedes, o ultraliberal de caricatura, concentra poderes inauditos, enfeixando as pastas da Fazenda, do Planejamento e da Indústria e Comércio. O czar da Economia nomeou os integrantes de uma equipe econômica composta por liberais competentes, de credenciais impecáveis. Já o núcleo militar do governo é composto por generais da reserva oriundos da tradição geiseliana.
Os tempos são outros, a obsessão estatista passou, dissolveu-se a geopolítica da Escola Superior de Guerra. Mas, entre os deuses do mercado e os do planejamento, as “forças da ordem” sempre penderão para o segundo. O Bolsonaro original vive nesse núcleo militar, selecionado por ele mesmo, não por um terceiro.
Os dois Bolsonaros são extremistas ideológicos, mas de sinais opostos. Um Bolsonaro tem consciência da presença do outro. De certo modo, o primeiro vigia o segundo, traçando-lhe limites. O presidente eleito refutou a proposta de Guedes de saltar para um regime previdenciário de capitalização individual recordando-lhe que os cidadãos confiam na promessa constitucional de que suas futuras aposentadorias têm a garantia do Tesouro.
Roberto Castello Branco descartou a privatização integral da Petrobras alegando não possuir um “mandato” político para tanto. A visão otimista diz que a convivência de extremismos simétricos arredondará as arestas agudas, produzindo um vetor reformista e pragmático.
Os dois Bolsonaros conversam a sós, divergem e convergem, esboçam planos de contingência. Desses diálogos ocultos, vazam indícios indiretos, colunas de fumaça em meio aos campos sujos.
O presidente eleito atribuiu a nomeação de Joaquim Levy ao livre arbítrio de Guedes (“Ele é quem está bancando o nome”) e foi além, marcando nitidamente as posições no palco do poder: “Quem ferrou o Brasil foram os economistas. Eles são parte importante do nosso plano de governo. Eles não podem errar, não têm o direito de errar.”
A tradução óbvia: Bolsonaro investe numa apólice de seguro para a hipótese de fracasso, que seria jogado às costas dos economistas, os “eles” inclinados a “ferrar o Brasil”. A tradução menos óbvia: a apólice do segundo Bolsonaro é o primeiro. A visão pessimista diz que, diante das esperadas resistências corporativas às reformas econômicas, o Bolsonaro liberal renunciará à Presidência em favor do Bolsonaro estatista.
No centro da mensagem da campanha de Bolsonaro não estava a economia, mas a agenda de valores e costumes. O “mercado”, essa entidade flácida, pervasiva, excitável, apostou especulativamente na mensagem secundária vocalizada por Guedes.
A escalação da equipe econômica preserva as expectativas criadas à margem dos palanques, mas os observadores menos tolos registram elevadas taxas de incerteza. Quando escolhe a terceira pessoa do plural —“eles”— para se referir à sua própria equipe econômica, o presidente eleito sugere que, ao planejar a ofensiva, desenha também o caminho da retirada.
“Guedes não dura seis meses”. A profecia partiu de Cid Gomes, porta-voz informal do irmão, que é pretendente a líder da oposição. O profeta interessado pode estar certo ou errado, mas entendeu algo relevante: no caso de Bolsonaro, em lugar de se sucederem, os estágios crisálida e borboleta se confundem.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.