Siglas têm nas mãos fracassos gravados na memória coletiva, mas não têm narrativa
Lula versus Bolsonaro. As sondagens indicam um segundo turno moldado pela mesma polarização política de 2018. Mas isso, como sabe qualquer especialista em pesquisas, é o som do passado —e eleições são sobre o futuro.
Tanto o ex como o atual presidente comandam minorias consolidadas, potencialmente capazes de impulsioná-los ao turno derradeiro, mas não de garantir-lhes o triunfo diante de uma terceira opção. A paisagem é mais ampla que o cenário numérico: objetivamente, o chamado “centro” tem uma oportunidade singular de bater um e outro em 2022. Em tese, a missão exige apenas uma campanha eficaz de esclarecimento político.
Não se trata de apontar, no plano ideológico, as simetrias verdadeiras e falsas (pois existem as duas) entre as candidaturas polares. Eleições só são sobre ideologia para a minoria que se imagina politizada. Trata-se de identificar e descrever dois fracassos históricos inapeláveis.
O fim do longo ciclo global de expansão das economias emergentes iluminou os contornos completos do lulismo. Lula/Dilma produziram uma devastadora recessão econômica junto com o assalto corrupto às empresas estatais.
A plataforma lulista, um varguismo atualizado, é essencialmente conservadora: perpetuar as engrenagens de um Estado perverso que premia o estrato superior do funcionalismo e os empresários dependentes de contratos públicos suspeitos ou gordos subsídios estatais. Seu resultado é condenar-nos à ineficiência econômica, gerar sucessivas crises fiscais e impedir a qualificação dos serviços públicos universais.
O governo Bolsonaro revelou-se, desde o início, uma regressão autoritária e, no campo econômico, um estelionato eleitoral. Paulo Guedes, o superministro que prometeu as chaves do paraíso, não entregou privatizações, concessões, abertura comercial ou reformas estruturais. No lugar disso, caminhamos a passos largos para uma combinação tóxica de inflação e estagnação.
Mas a perversão bolsonarista evidenciou-se inteiramente durante a pandemia. O negacionismo chucro, a sabotagem perene das medidas de contenção sanitária, a irresponsabilidade na aquisição de vacinas, a inação diante da tragédia em Manaus formam uma coleção de crimes contra a saúde pública. Bolsonaro é um vírus letal.
O centro político tem tudo nas mãos: a experiência recente, gravada na memória coletiva, de dois fracassos consecutivos. Mas não tem narrativa, discurso, programa ou rosto. E isso porque, desde o segundo turno de 2018, rendeu-se ao bolsonarismo. Os principais partidos centristas —o PSDB, o MDB e o DEM— associaram-se, em graus variados, ao governo da extrema direita. A adesão, aberta ou oculta, pesa como chumbo. Não há sabão capaz de limpar as mãos que tocaram uma poça tão pútrida.
A explicação sugerida pela esquerda para o gesto vergonhoso está errada. A coalizão bolsonarista não representa a elite econômica nacional, melhor servida nos governos FHC e Lula. Pelo contrário, é uma liga frágil que reúne fanáticos extremistas, militares ressentidos da reserva, facções da polícia e milícias criminosas, máfias regionais de desmatadores, bispos de negócios e uma franja periférica do empresariado. Bolsonaro capitaneia a nau de um governo lúmpen.
As raízes da estranha adesão podem ser procuradas no antipetismo visceral difundido durante a louca aventura econômica dilmista ou, talvez, numa camada bem mais profunda da nossa história, que remete à truncada, precária absorção dos valores democráticos. Qualquer que seja a explicação, o advento do bolsonarismo provou uma tese angustiante: no Brasil, o centro político desconhece a fronteira de princípios que deveria separá-lo da direita reacionária.
2022 não está escrito nas estrelas. Mas a eleição que tinha tudo para encerrar duas experiências falimentares parece caminhar rumo à reencenação da farsa vulgar de 2018.