Durante quase 14 anos, nos governos lulopetistas, o diplomata Paulo Roberto de Almeida experimentou o que chama de “exílio involuntário”. Excluído pela chefia de qualquer atividade, instalou seu “escritório de trabalho” numa mesa da biblioteca do Itamaraty. O intervalo entre um “exílio” e outro durou menos de dois anos. Exonerado da direção do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais (Ipri), ele se prepara para seguir rumo à Sibéria: “Vou ter de voltar à biblioteca para poder trabalhar”. O bolsonarista Ernesto Araújo imita Celso Amorim, chanceler lulista, rebaixando o Itamaraty ao estatuto de ferramenta de uma facção.
“Personalidades autoritárias não apreciam espíritos libertários como o meu”. O diagnóstico aplica-se tanto a Araújo como a Amorim. Nos tempos do segundo, ondas de expurgos afastaram dezenas de diplomatas experientes que não aceitavam a condição de sabujos do ministro de turno. Hoje, a pretexto de promover jovens diplomatas, o primeiro cerca-se de bajuladores dispostos a aplaudir com igual fervor suas asneiras retóricas e suas insanas iniciativas de política externa. A corrupção moral não figura no Código Penal, mas suas consequências são tão danosas quanto a corrupção política.
Na democracia, uma fronteira nítida separa a conquista do governo da colonização partidária do Estado. O bolsonarismo aprendeu com o lulopetismo a ultrapassar a linha divisória, excluindo os “espíritos libertários” para não ouvir vozes dissonantes. Daí, nasce o governo de facção, isolado numa concha de certezas ideológicas, protegido da crítica por espessos cordões de puxa-sacos. A demissão de Almeida é mais um sintoma de que a eleição presidencial produziu um giro de 360 graus, colocando-nos de volta no ponto de partida.
Araújo plagia Amorim. O chanceler lulista anunciou um novo começo para nossa política externa, que se tornaria “ativa e altiva”, substituindo a orientação supostamente subserviente de seus antecessores. O chanceler bolsonarista promete “libertar a política externa” dos grilhões do “globalismo” para que ela represente o “Brasil verdadeiro”. A ideia de inaugurar a História, enterrando um passado de impurezas e escrevendo capítulos imaculados no mármore branco, é marca invariável das “personalidades autoritárias”. Mas o paralelo entre os dois chanceleres tem limites —e as circunstâncias da demissão de Almeida lançam luz sobre uma diferença fundamental.
O ato de exoneração — comunicado depois que o diplomata publicou, em seu blog pessoal, as críticas formuladas por FH e Rubens Ricupero à atuação de Araújo na crise venezuelana — derivou efetivamente das críticas de Almeida a Olavo de Carvalho. A polêmica emergiu no 23 de fevereiro, dia do “cerco humanitário” a Maduro, quando Araújo sugeriu a abertura de um corredor de invasão em Roraima, a ser utilizado por forças dos EUA. A ideia evidenciou que o chanceler despreza as leis brasileiras e nossa tradição de política externa. Ao mesmo tempo, revelou que ele comprara, pelo valor de face, o blefe vazio da Casa Branca.
O desatino de Araújo provocou uma intervenção branca no Itamaraty. Um cordão sanitário formado pelo vice, Hamilton Mourão, e pelos generais Augusto Heleno (GSI) e Villas Bôas, ex-comandante do Exército, rodeou silenciosamente o ministro de Relações Exteriores. Então, na impossibilidade de demitir os generais que o sitiaram, o “Zeus de subúrbio” (apud Almeida) direcionou seu raio contra um espírito livre situado no interior de sua casamata.
Todo o episódio distingue, sob um aspecto crucial, o chanceler bolsonarista de seu predecessor lulista. A política externa de Amorim obedecia a centros de comando claros: Lula e o PT. Já a política externa de Araújo emana de um centro de comando clandestino, constituído por Olavo de Carvalho, Eduardo Bolsonaro e Steve Bannon, o ex-assessor de Trump que tenta construir uma “Internacional dos nacionalistas”.
No fim, a sorte sorriu para Almeida: as amplas vidraças da biblioteca Azeredo da Silveira são o melhor ponto de observação do incêndio que devasta o Itamaraty.