Antes, Obrador denunciava os EUA pela criação do Nafta; hoje, denuncia Trump por pretender abolir o Nafta
No Zócalo, a extensa fachada barroca do Palácio Nacional à frente, constato que perdi as cerimônias de hasteamento da bandeira em honra a Emiliano Zapata (10 de abril) e a Benito Juárez (18 de julho). “Antes de serem uma realidade, os EUA foram, para mim, uma imagem. Desde crianças, nós, mexicanos, vemos esse país como o Outro. Um Outro que é inseparável de nós e que, ao mesmo tempo, é radical e essencialmente o estranho.” A passagem, de Octavio Paz (“O Espelho Indiscreto”, 1976), condensa uma relação de fascínio ritmada por ciclos de atração e repulsão. Juárez simboliza a atração: o México liberal, que queria a modernidade representada pelos EUA. Zapata simboliza a repulsão: o México da Revolução, hipnotizado pela política nacional-estatista, que queria ser o oposto dos EUA. A disputa presidencial mexicana recoloca o dilema, mas sob formas inesperadas.
Andrés Manuel López Obrador inaugurou sua terceira campanha presidencial em Ciudad Juárez, na fronteira com os EUA, local que concentra os dois simbolismos contrastantes. A cidade homenageia Benito Juárez, o presidente de humildes raízes indígenas que comandou a resistência à invasão francesa (1862-67). A ironia é especialmente aguda para a candidatura nacionalista de Obrador: Juárez restaurou a soberania mexicana graças ao apoio dos EUA, derivado da Doutrina Monroe. Hoje, 150 anos depois, Obrador lidera as pesquisas graças à repulsa universal dos mexicanos a Donald Trump. O parafuso da história dá mais uma volta e, pela enésima vez, o México pinta seu futuro com as tintas que escorrem da fronteira norte.
Obrador tem, às suas costas, a história do Partido da Revolução Democrática (PRD), fundado por Cuauhtémoc Cárdenas. Lázaro Cárdenas, o célebre pai de Cuauhtémoc, presidiu o país entre 1934 e 1940, concluindo a obra da Revolução Mexicana com a nacionalização da indústria petroleira, a reforma agrária e a criação do PRM (atual PRI), o partido que monopolizou o poder durante seis décadas. A hegemonia do PRI encerrou-se em 1989, no rastro de uma cisão provocada pela política de liberalização econômica do presidente Salinas de Gortari. Da cisão, surgiu o PRD, agrupando a ala nacionalista do PRI e diversas correntes de esquerda.
Salinas de Gortari encerrou uma era. Seu programa de privatizações foi coroado, pouco mais tarde, pelo tratado do Nafta, de 1994. Com o Nafta, Zapata cedia lugar a Juárez: o México engajava-se numa radical negação do passado ou, o que dá no mesmo, na retomada de um outro passado. O PRD nasceu como negação da negação, agarrando-se à herança de Lázaro Cárdenas e denunciando a parceria com os EUA.
Obrador, um populista clássico, já não está no PRD, mas no Morena, partido cortado no molde de seu imenso ego. Em tese, sua candidatura exprime a permanência do impulso nacionalista, antiamericano e terceiro-mundista que configurou o México moderno. “México First”: a campanha de Obrador forma uma imagem espelhada do “America First” de Trump.
Mas o dualismo, sempre tão sedutor, tem limites. De 1994 para cá, a ideologia do nacional-estatismo mexicano sofreu irreparável erosão. O PRD concorre em aliança com o PAN, de centro-direita, renunciando à utopia de restauração do mundo de Lázaro Cárdenas. Obrador, ele mesmo, arquivou sua oposição de princípio ao Nafta, preferindo bradar contra a corrupção a prometer uma ruptura com o acordo de livre comércio. De certo modo, a abertura econômica converteu-se num consenso nacional mexicano que exclui apenas a extrema-esquerda. Antes, Obrador denunciava os EUA pela criação do Nafta; hoje, denuncia Trump por pretender abolir o Nafta.
O “México First” de Obrador é uma nação integrada à globalização —com o Nafta ou com a China, a Bacia do Pacífico e a União Europeia. Aparentemente, o México aprendeu a lição que o Brasil não quer aprender.
* Demétrio Magnoli é doutor em geografia humana e especialista em política internacional.