Não declaremos uma guerra ao coronavírus cujas vítimas serão os sem patrimônio, cartão de crédito e investimentos
Trump qualificou o vírus como um “embuste dos democratas” pouco antes da avalanche em Wall Street lançá-lo a algo parecido com a realidade. Um papagaio brasileiro chamado Jair tratou-o como uma invenção da mídia perniciosa, isolando-se no poço da ignorância.
Diante disso, a reação das pessoas esclarecidas foi agarrar-se ao mastro da razão para vencer, antes que seja tarde, a batalha contra a estupidez. No passo seguinte, ainda em curso, o apego à voz da ciência transmuta-se em fanatismo científico e fundamentalismo epidemiológico. Hoje, esse perigo supera o da já desmoralizada negligência.
Vamos mesmo —nós, esclarecidos— partir para o elogio da China? Médicos chineses alertaram para a doença em dezembro, mas foram silenciados. Esqueceremos tão cedo, em nome de uma ilusória “ética de resultados”, que a Covid espalhou-se precisamente naquelas semanas de camuflagem e repressão? A vigilância cibernética dos cidadãos galgou novo patamar permanente, junto com o avanço do vírus. Festejaremos o Grande Irmão como aliado e exemplo, em nome da saúde pública?
Ouve-se, dos esclarecidos, um clamor crescente por medidas extremas. A Itália paga o preço da displicência com a moeda do “lockdown” compulsório. Macron pescou no lago do senso comum a palavra “guerra” para descrever uma emergência sanitária.
Guerra tem implicações: leis de exceção, justiça sumária, censura. Quem pede quarentenas coletivas forçadas está disposto a justificar suas ramificações lógicas? Sacrificaremos as liberdades civis no altar de uma guerra fabricada por artifício retórico? Concederemos, os esclarecidos, um AI-5 sanitário a Bolsonaro?
O vírus é “estrangeiro”, imigrante? Lá atrás, a OMS criticou os EUA pela proibição de entrada de chineses. Depois, Trump fechou as fronteiras à Europa, e sofreu a crítica da União Europeia (UE). Hoje, a UE, maior foco global de infecções, fecha suas fronteiras externas. A praxe normalizada pela “guerra” sanitária ressurgirá em outras “guerras”, econômicas e culturais. Quando emudecem sobre isso, os esclarecidos dissolvem os anticorpos que nos protegem do vírus da xenofobia.
Um esclarecido aponta o dedo acusador para banhistas na areia; outro, para jovens aglomerados em torno de uma mesa de bar. Há bons motivos para invocar a solidariedade social, a responsabilidade coletiva, a ética cidadã. Mas, num salto quântico, passaremos a solicitar o recurso à força policial?
Policiais italianos em roupas brancas de máxima proteção perseguem suspeitos de desobediência à quarentena. Vestiremos nesses trajes os PMs desordeiros do Ceará, os policiais-milicianos do Rio, dando-lhes o mandato de esvaziar as ruas e os becos das favelas? Em nome da vida, enviaremos a PM paulista a Paraisópolis com a missão de dispersar um baile funk?
O Brasil não é a Itália. Nós, esclarecidos, vivemos na bolha da alta classe média —mas precisamos conseguir pensar fora dela. “Que ninguém saia de casa: distanciamento social!”. Com que direito moral apontamos o modelo de “lockdown” absoluto como solução para cortar a transmissão do vírus em São Paulo ou no Rio? Na Rocinha, no Grajaú, em Cidade Ademar, onde as pessoas residem em habitações de 20 metros quadrados que abrigam cinco ou seis indivíduos?
O Brasil não é os EUA. Aqui, o governo não postará cheques periódicos de mil dólares para cada família durante o intervalo imensurável da “guerra”. Vamos parar os transportes públicos e decretar, universalmente, o trabalho à distância? Como ficam motoristas, comerciários, garçons, pedreiros, as massas de informais?
Os esclarecidos fazem bem em decorar os mandamentos da epidemiologia —mas incorrem em erro de classe ao jogar fora os manuais básicos da sociologia. Não declaremos uma guerra cujas vítimas serão os outros —os sem patrimônio, cartão de crédito e investimentos financeiros.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.