Polarização política no Brasil e nos EUA destila polêmica estúpida, mas não é assim na Alemanha
Nos EUA, é Anthony Fauci; no Brasil, Mandetta. Os dois médicos ocuparam o centro dos palcos, ofuscando Trump e Bolsonaro. O presidente americano resiste prudentemente ao perigoso instinto de demitir o diretor dos Institutos Nacionais de Saúde. O brasileiro, comandado por sua própria seita de sicários de redes sociais, acaba de dispensar o ministro da Saúde.
Lá, como aqui, ainda que em tons menos primitivos, a polarização política destila uma polêmica estúpida que contrapõe saúde pública e economia. Não é assim na Alemanha, onde ninguém discute que os dois elementos pertencem à mesma equação.
A pandemia oferece um curso inteiro sobre os efeitos do populismo. Trump e Bolsonaro falaram numa “gripezinha”. As sociedades reagiram, atemorizadas pelos monstros, entregando sua sorte aos médicos.
Nesse passo, enquanto a direita populista agrupava-se atrás do estandarte da “economia”, todos os demais constituíam uma frente ampla em defesa da “vida”. A quarentena converteu-se em programa político e, quanto mais à esquerda, mais radical é a convocação ao isolamento social.
Há uma certa lógica na atração da esquerda pela quarentena. A China fez a mais completa delas. Quarentenas reforçam o poder estatal, em detrimento das liberdades públicas e individuais. É a hora da polícia: a emergência propicia o controle da informação, a mordaça à imprensa. A paralisia econômica demanda agressivas políticas de distribuição de fundos públicos. A “mão invisível” do mercado cede lugar à mão bem visível do Estado. O fechamento de fronteiras promove desglobalização.
Contudo, diante dos monstros, a atração estende-se bem além da esquerda. Quem quer ficar à mercê de ideólogos descontrolados, santos guerreiros da salvação pela cloroquina? Como tolerar governantes que se associam a bispos de negócios empenhados na restauração da prática medieval de preces coletivas para expulsar a peste? Daí, a escolha majoritária pelo “governo dos médicos”.
O populismo está longe do núcleo do poder na Alemanha. Por lá, o colchão de um robusto sistema de saúde pública propiciou a adoção de medidas de isolamento social menos draconianas que as da Itália ou da Espanha. O governo central e os governos estaduais operaram em estreita cooperação, ouvindo recomendações de equipes de especialistas. O sistema federal provou que é capaz de agir. A curva de óbitos foi achatada em níveis relativamente baixos. No processo, os médicos nunca tomaram o lugar dos representantes eleitos pelo povo.
A transição para a reabertura começou numa reunião da primeira-ministra Angela Merkel com os governadores. Merkel guiou-se por um relatório encomendado à Academia Nacional de Ciências. O roteiro foi preparado por 26 experts ““entre os quais, além de médicos, contam-se economistas, sociólogos, juristas e filósofos. A frase-chave diz que as medidas emergenciais devem ser gradualmente removidas “por razões constitucionais”. A equação alemã tenta equilibrar não dois, mas três imperativos: saúde, economia, liberdades constitucionais.
Não é o paraíso, a morada dos anjos. Há divergências, dissonâncias, tensões, acesos debates políticos. Mas, por lá, praticamente ninguém discute sobre o valor relativo da vida e do dólar (ou do euro), pois dá-se como óbvio que economia é vida e, também, que os negócios não podem decolar em meio à instabilidade gerada por um colapso hospitalar.
“Saúde ótima e a rápida retomada da vida social não são fundamentalmente incompatíveis entre si, mas mutuamente dependentes”, escreveram os experts, sintetizando um consenso nacional.
Na ausência do personagem do monstro, a novela sobre o médico e o monstro ficou fora das telas alemãs. A diferença não está na “cultura” dos alemães, mas numa paisagem política menos envenenada pelo populismo. Lá, o vírus é, exclusivamente, um microrganismo.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.