Há uma nuvem maior no horizonte da Otan, geralmente ausente da tela dos analistas
Hastings Lionel Ismay, principal conselheiro militar de Winston Churchill, assumiu o posto de primeiro secretário-geral da Otan em 1952. É dele a mais concisa definição dos objetivos da Aliança Atlântica: “manter a URSS fora, os EUA dentro e os alemães por baixo”. Missão cumprida, disseram os líderes ocidentais no aniversário de 40 anos da maior aliança militar da história, que coincidiu com o encerramento da Guerra Fria. Hoje, porém, o aniversário de 70 anos ficou marcado pelo diagnóstico do francês Emmanuel Macron, que advertiu para a “morte encefálica” da Otan.
O “encefálica” é a chave. A estrutura militar da Otan segue bem viva — e rejuvenescida. A dissolução da URSS, em 1991, borrou os contornos do inimigo, e a aliança engajou-se em operações inesperadas, na antiga Iugoslávia e no Afeganistão, enquanto seus integrantes europeus reduziam os gastos com a defesa. A intervenção russa na Ucrânia, em 2014, reacendeu a chama extinta, restaurando a missão original de proteção da Europa.
A Otan deslocou brigadas multinacionais para os Estados Bálticos e a Polônia e está erguendo uma força de reação rápida constituída por 30 batalhões mecanizados, 30 esquadrões aéreos e 30 navios de guerra. Ao mesmo tempo, com as notórias exceções da Alemanha, da Itália e da Espanha, os países europeus aproximam-se da meta de 2% do PIB em gastos com a defesa. O mal que aflige a Otan é político.
As análises convencionais apontam as tensões inscritas no triângulo EUA/Turquia/França, que emergiram como estilhaços de bombas de fragmentação nas celebrações dos 70 anos. A festa estranha, no Palácio de Buckingham, foi pontuada por recriminações de Donald Trump contra Macron e do autocrata turco Recep Erdogan contra todos os demais.
A “morte encefálica” é uma referência ao nacionalismo isolacionista de Trump, que chegou a qualificar a Otan como “obsoleta” e faz de tudo para erodir a União Europeia, um pilar geopolítico central da Aliança Atlântica. A frase sinistra do francês foi disparada em reação à decisão de Trump, adotada sem aviso aos aliados europeus, de retirada das forças americanas do norte da Síria.
Erdogan expressa as tendências centrífugas que ameaçam a aliança. A Turquia, pilar da Otan no Mediterrâneo Oriental, sentinela dos estreitos que separam a Rússia do Mediterrâneo, inclina-se na direção de Moscou. Há pouco, numa iniciativa sem precedentes, adquiriu da Rússia um sistema de defesa antimísseis. Abre-se uma fenda no “gigantesco escudo de solidariedade”, como o britânico Boris Johnson qualificou a aliança na cúpula dos 70 anos.
Macron simula falar como inflexível defensor da Aliança Atlântica quando coloca Trump na alça de mira. De fato, atualiza o antigo sonho francês de converter o componente europeu da Otan em uma organização de defesa autônoma, sob a liderança da França. A ideia de um “exército europeu” não encontra eco na Alemanha e, menos ainda, no Reino Unido. Mas, sobretudo, alarma os países da Europa Centro-Oriental que enxergam no guarda-chuva americano seu recurso vital de segurança.
“Obsoleta”, disparou Trump. Há uma nuvem maior no horizonte da Otan, geralmente ausente da tela dos analistas. Richard Nixon promoveu a aproximação sino-americana, em 1972, para isolar a URSS. Desde Barack Obama, os EUA passaram a definir a China como rival estratégico principal no século 21. Trump completou o giro, a seu modo. O presidente americano ensaia inverter a equação de Nixon, aproximando os EUA da Rússia para isolar a grande potência asiática.
A Casa Branca almeja o acordo dos europeus para classificar a China como inimigo estratégico da Otan — e, de imediato, quer alinhá-los à postura americana de cerco à Huawei, na moldura da “guerra do 5G”. Os europeus, porém, não parecem dispostos a seguir essa trilha. Um relatório confidencial adotado pela aliança dedica várias páginas à China, sem produzir nenhuma conclusão operacional.
A China foi mencionada, mas apenas em termos ambíguos, na cúpula dos 70 anos. Apaga-se no passado o bloqueio soviético de Berlim, em 1948, marco dramático que originou o “escudo de solidariedade”.