Presidente bielorrusso tem os traços de um fantoche ideal
No rastro de uma eleição farsesca, enquanto manifestantes sofriam brutal repressão, o presidente da Belarus, Aleksandr Lukachenko, recebia duas mensagens de congratulações.
Uma, do chinês Xi Jinping, desejando-lhe “muitas felicidades”, e a outra, mais específica, do russo Vladimir Putin, dizendo que o resultado “atende aos interesses fundamentais dos povos fraternos da Rússia e da Belarus” e assegura “relações de mútuo benefício em todas as áreas”. Ditadores ajudam uns aos outros —mas há algo mais neste caso.
Xi e Putin temem, acima de tudo, protestos nas ruas. As balas de borracha e a munição real empregadas pelas forças de segurança de Lukachenko, as 6.000 prisões, os espancamentos de detidos —tudo isso serve como alerta disciplinário para chineses e russos. O que aflige Putin, em particular, é o espectro de uma “Maidan bielorrussa”, isto é, a reprodução da revolução ucraniana de 2014 no Estado-vassalo vizinho.
Putin orienta-se pelo manual clássico da geopolítica russa, que enxerga o corredor de planícies entre a Alemanha e a Rússia europeia como estrada de trânsito de exércitos invasores. Há uma história longa, dramática, pontuada por Napoleão e Hitler, que sustenta o raciocínio.
Depois da implosão da URSS, a Otan avançou suas forças até a fronteira oriental polonesa. Moscou não classifica Belarus como nação soberana, mas como ativo territorial de profundidade estratégica russa.
“Maidan bielorrussa” é hipótese remota. O nacionalismo ucraniano antirrusso nutre-se de um trágico passado recente: o Holodomor, a Grande Fome de 1932-33 provocada pela coletivização forçada de Stálin. Não há um nacionalismo similar na Belarus.
Além do mais, depois de tudo, a Ucrânia não ganhou seu almejado passaporte para a União Europeia, um sonho difícil despedaçado de vez pela guerra separatista de baixa intensidade instalada pelo Kremlin no leste do país. Os bielorrussos sabem disso, como também conhecem a profunda dependência econômica que prende sua nação à Rússia.
Belarus é uma ponte crucial na geopolítica dos gasodutos russos. Por seu território, passa um quinto do gás fornecido pela Rússia à Europa. O duto Yamal transporta combustível extraído na Sibéria Ocidental para a Alemanha e o Luzes do Norte segue rota quase paralela, com destino à Polônia.
A Gazprom russa, que controla os dois dutos, absorveu a companhia de gás bielorrussa Beltransgaz em 2011. Belarus recebe petróleo e gás russos a preços subsidiados, ferramenta de chantagem que Putin utiliza para submeter Lukachenko às suas vontades.
Lukachenko, presidente bielorrusso desde que o cargo foi instituído, em 1994, tem os traços de um fantoche ideal. O antigo dirigente de uma fazenda coletiva, único deputado do Parlamento bielorrusso a votar contra a dissolução da URSS, conduziu seu país aos acordos da União com a Rússia de 1996-99, que preveem uma união monetária, cidadania comum e política unificada de defesa. Contudo, a vassalagem tem uma fronteira, que é a garantia de seu poder pessoal sobre a Belarus.
“Não somos russos, somos bielorrussos”, proclamou Lukachenko em 2014, após a anexação da Crimeia pela Rússia, no primeiro discurso em que trocou a língua russa pela bielorrussa. Ano passado, na mesma linha, o ditador resistiu à insistência de Putin pela imediata implementação da União com a Rússia.
Num contexto político diferente, ele se comporta como Nicolae Ceausescu, o tirano comunista da Romênia que rejeitou a submissão absoluta a Moscou. É por isso que, paradoxalmente, Putin sorri duas vezes diante da revolta em curso na Belarus.
A satisfação óbvia emerge da selvagem repressão, que ensina aos russos uma lição sobre limites. Menos explícita é a que emerge da conflagração social nas ruas do país vizinho: um Lukachenko debilitado não se atreverá a dizer “não” ao mestre e protetor.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.