Policiais bandidos sempre existirão, mas a polícia bandida é fruto de seus superiores
Há, e são muitos, policiais profissionais que cumprem a sua missão de proteger a ordem pública e a segurança dos cidadãos respeitando estritamente a lei. Existem, e não poucos, policiais que vão muito além de seu dever. Eles apartam brigas de casais, assumem riscos pessoais excessivos para salvar indivíduos em perigo, fazem partos em situações de emergência, amparam famílias durante os dias traumáticos do sequestro de um dos seus. Por culpa dos inimigos da polícia, geralmente esquecemos disso.
Um inimigo da polícia é o policial que usa sua arma como ferramenta para violar a lei. Aquele que chantageia pessoas vulneráveis para obter propina, cobra tributos informais de atividades irregulares, engaja-se na intermediação de negócios ilegais, associa-se a máfias políticas ou empresariais. Ou, ainda, aquele que pratica pequenos gestos cotidianos de arbítrio, recorre à brutalidade gratuita, envolve-se em operações de vingança homicida, forma milícias. Esse tipo de policial degrada sua profissão: a substância pegajosa que dele emana suja o uniforme de seus colegas honestos e mancha até mesmo os distintivos dos colegas heroicos.
O policial contaminado pelo preconceito é um inimigo da polícia. Ele enxerga o bairro de periferia ou a favela como terra estrangeira —e seus habitantes, especialmente quando jovens e negros, como delinquentes naturais. Sob a lente de seus óculos, o baile funk dos pobres é orgia criminosa. Nesse olhar fraturado começa o trajeto que se conclui em tragédias como a de Paraisópolis, em São Paulo. Entretanto, quase invariavelmente, a consumação da barbárie depende de uma palavra que vem de cima.
A polícia é o que seus comandos querem que seja. A cultura policial nasce nos escalões superiores —isto é, nos comandantes e nas autoridades políticas que os selecionam. Policiais bandidos sempre existirão, mas a polícia bandida é o fruto do presidente que elogia o arbítrio e a truculência, do filho do presidente que homenageia milicianos, do governador que pede tiros “bem na cabecinha” ou do que nada vê de condenável na alta letalidade das operações de sua polícia. Os principais inimigos da polícia têm nome e sobrenome: chamam-se Jair Bolsonaro, Wilson Witzel, João Doria.
O policial profissional sabe que o policial bandido é seu inimigo —e, por isso, espera que sistemas de controle o identifiquem e excluam da corporação. Entre os maiores inimigos da polícia encontra-se Sergio Moro, o ministro que, por meio de seu “excludente de ilicitude”, almeja impedir a punição de criminosos uniformizados. O dispositivo, se aprovado, representaria o triunfo jurídico da polícia bandida —ou, dito de outro modo, o enterro definitivo da polícia profissional. Atrás da proposta legislativa, espreita a sombra do esquadrão da morte.
A Lei de Drogas, envelope jurídico do preconceito social, é o pátio de encontro dos inimigos da polícia. Seus holofotes comprimem, numa tábua única, a alta criminalidade do narcotráfico, o pequeno crime da “mula” ou do “aviãozinho” e o consumo de entorpecentes no pancadão da periferia (esqueça a rave de Pratigi, na Bahia: nas festas da classe média não circulam drogas!). Os adolescentes mortos em Paraisópolis são “danos colaterais” da Lei de Drogas, como o são as crianças alvejadas no Rio e a multidão de presos sem nome das penitenciárias convertidas em escolas do crime.
Os inimigos da polícia fazem com que, no lugar de respeito, a polícia se torne objeto de temor, aversão e ódio. Não há nada mais perigoso do que isso para os policiais. Eles têm que cumprir sua missão em territórios hostis, entre pessoas que os enxergam como as ameaças mais letais. Devem, portanto, operar em comunidades que preferem o silêncio à cooperação ou, em casos extremos, escolhem cooperar com os criminosos. O partido do “excludente de ilicitude” também mata policiais.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.