O que é um Bolsonaro desarmado perto de um Ortega armado?
Calculadamente, Fernando Haddad posiciona-se para assumir a condição de avatar de Lula na campanha presidencial. Na entrevista concedida à Folha (23/7), celebra o líder onipresente (“as pessoas sentem Lula”) e fala da economia como se nada de especialmente relevante tivesse acontecido no governo Dilma.
Mas, sobretudo, critica Alckmin por ter o aval do centrão (“o que tem de mais fisiológico no país, um atraso”), exibe o PT como farol da “modernidade” e afirma que os empresários “precisam ser educados para a democracia”. Arrogância é pouco. O potencial avatar envereda pelo caminho do autoritarismo, vestindo-o com uma fantasia iluminista.
O centrão, certamente fisiológico e atrasado, ofereceu sustentação aos dois mandatos de Lula e, até as vésperas do impeachment, ao governo Dilma.
Lula e seu candidato a prefeito paulistano, um certo Haddad, peregrinaram à Canossa de Maluf, trocando a humilhante foto do abraço pelo apoio eleitoral. Antes de “educar” os empresários, Haddad precisa educar-nos a todos na arte de apagar a história recente.
“Modernidade” versus “atraso”. A polaridade inspirou a primeira sociologia brasileira, até que se compreendessem os mecanismos pelos quais o atraso se moderniza e, por essa via, se reitera. A história do PT ilustra, melhor que tudo, o processo.
De um Lula a outro, no trajeto de São Bernardo ao Planalto, o Brasil aprendeu com quantos mensalões se faz uma maioria parlamentar e com quantos petrolões se assina um pacto com as empreiteiras. Haddad precisa reeducar-se a si mesmo fora do pensamento dualista.
O apoio de parcela do empresariado a Bolsonaro provoca a santa indignação de Haddad. Mas qual é a surpresa na informação de que não poucos empresários transitam de um amor louco pelo lulismo para uma arrebatadora paixão pelo bolsonarismo?
O mesmo empresário que escolhia vendar seus próprios olhos para capturar as rendas fáceis presenteadas pelo BNDES de Mantega está disposto a conservar sua cegueira política voluntária para coletar as 30 moedas que a farra ultraliberal de Paulo Guedes promete distribuir.
Não sei qual seria o método pedagógico de Haddad para “educar” os empresários, mas nenhum é mais eficaz do que o utilizado pelo governo Lula, “o mais responsável de todos os governos da história”, com figuras como Marcelo Odebrecht e Eike Batista.
De fato, o “Estado mínimo” de Bolsonaro e seu guru econômico não combinam com a democracia. Os eleitores bolsonaristas, empresários ou outros, talvez não compreendam isso —ou, talvez, simplesmente não gostem da democracia.
Mas a ambição de um partido de “educar” a sociedade expõe sua alma autoritária. Mussolini queria educar os italianos. Fidel Castro almejava educar os cubanos. Pol Pot resolveu educar os cambojanos. Já os partidos democráticos nutrem esperanças mais modestas: como admitem que não são portadores da verdade histórica, e que podem estar errados, desejam apenas persuadir os eleitores.
“Devem ser educados para a democracia.” Haddad usa a palavra “democracia” para expressar sua repulsa a Bolsonaro. Nisso, tem razão. Mas o que é um Bolsonaro desarmado diante de um Ortega armado?
Nosso “clown” da extrema direita mata imaginariamente seus adversários, sonhando restaurar a ditadura que perdeu os dentes quando ele não passava de um mero cadete. Já Ortega, a quem o PT oferece o mesmo apoio incondicional que presta a Maduro, mata realmente, dia sim e dia também, sustentando seu poder à base de selvagem repressão.
A jornalista Catia Seabra esqueceu-se de confrontar Haddad com perguntas sobre a Nicarágua ou a Venezuela. Deixou-me curioso. Por que o partido que representa a “modernidade” e fala em nome da “democracia” defende fanaticamente os governos Ortega e Maduro? Por que Haddad não se ocupa, antes de tudo, em educar o próprio PT? Quem educa o educador?
* Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.