Demétrio Magnoli: Haddad, caso perdido

Petista retorna como sonâmbulo ao aposento de sempre e recoloca máscara de Lula.
Foto: Ricardo Stuckert
Foto: Ricardo Stuckert

Petista retorna como sonâmbulo ao aposento de sempre e recoloca máscara de Lula

“Vocês repararam que o PSDB perdeu a quinta eleição seguida e a mídia conservadora jamais lhe pediu autocrítica?”.

A indagação de Fernando Haddad, pelo Twitter, situa-se a meio caminho entre a alienação e a má-fé. A cobrança, que não se restringe à “mídia conservadora”, relaciona-se às sucessivas vitórias eleitorais do PT, não à derrota recente.

A tão necessária revisão teria que incidir sobre a política econômica que elegeu Dilma duas vezes, às custas da maior recessão da nossa história, e à corrupção sistemática, que financiou três triunfos eleitorais. Mas, para fazê-la, seria preciso uma régua política estranha ao lulismo.

Haddad parecia a muitos, inclusive a mim, um potencial deflagrador da “refundação” do PT. Engano. Sua entrevista à Folha (26/11) prova que o discurso esboçado no segundo turno era teatro eleitoral.

O candidato, que engoliu a narrativa do “golpe do impeachment” por exatas três semanas, retorna como sonâmbulo ao aposento de sempre, recoloca a máscara de Lula e se exibe como líder do PT de Gleisi, Lindbergh et caterva.

Lula “teria ganhado a eleição”, afirma o profeta Haddad, desafiando as evidências disponíveis. A operação de transferência de votos lulistas foi um sucesso, como atestam os resultados do primeiro turno.

Todos os indícios sugerem que, no segundo, o “moderado” Haddad obteve até mesmo os sufrágios de incontáveis eleitores refratários a votar em Lula. A profecia haddadiana não é um exercício de análise contrafactual, mas um truque retórico para a reinstalação da narrativa sectária.

Na entrevista, quando acusa o Judiciário e o Ministério Público de operarem sob “viés antidemocrático”, Haddad retorna à lenda da conspiração universal contra o PT.

Nela, quando sugere que nossa democracia deu lugar a um “modelo híbrido”, Haddad curva-se ao dogma inventado no impeachment, descrevendo o triunfo de Bolsonaro como a conclusão de um “golpe das elites”. O disco de vinil riscado repete, aborrecidamente, seu verso mais tedioso.

Mano Brown compareceu ao comício de Haddad, na Lapa (RJ), para dizer que “o PT não está conseguindo falar a língua do povo”. Naquela hora, Haddad deu “toda razão” ao rapper, antigo “companheiro de viagem” do lulismo. Mas, diante da Folha, esqueceu o episódio, atribuindo o triunfo de Bolsonaro à “elite econômica” que “abriu mão do verniz”.

O círculo narrativo se fecha: a “elite”, de “viés antidemocrático”, impediu a vitória certa de Lula, concluindo o “golpe do impeachment” pela imposição de um “modelo híbrido”.

O PT, puro e galante, organizará uma frente de defesa dos direitos sociais (a “frente popular”, na linguagem emprestada do stalinismo) e uma frente de defesa dos direitos civis (a “frente democrática”, na mesma chave de linguagem). De Haddad, não sai nada.

Recessão econômica? Corrupção nas estatais? Defesa do falido regime ditatorial venezuelano? O PT não tem nada a rever. “Depois de tudo que aconteceu, quase tivemos a quinta vitória consecutiva”, comemora Haddad.

“Fomos vítimas de uma campanha de terrorismo cultural”, explica o esboço de resolução da direção nacional do partido. Por isso, “a defesa do PT exigirá um trabalho profissional de reconstrução da imagem”. É coisa para as turmas do marketing, da cenografia e da maquiagem.

A mistura fina de triunfalismo e vitimismo tem utilidade: serve para lacrar a direção lulista numa redoma higienizada, salvando-a da crítica de suas próprias bases.

Também tem consequências. O PT que não admite se reformar condena a esquerda brasileira a viver num gueto político e social, agarrada às reminiscências do lulismo.

Pior: a eternização de uma narrativa desmoralizada agrega nutrientes à lagoa fétida da extrema direita bolsonarista. O governo eleito tem tudo para dar errado. Mas, ao menos, tem no PT de Haddad a oposição de esquerda dos seus sonhos.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

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