Não há diferenças essenciais entre Damares e os fundamentalistas islâmicos
“A igreja deve governar”, exclamou Damares Alves, nova ministra da Mulher, da Família e Direitos Humanos aos fiéis de sua seita evangélica. Há pouco, bastaria contraditá-la invocando a laicidade estatal. Hoje, face ao regresso político em curso, é preciso examinar as relações entre igreja, partido e governo para redescobrir o valor universal do princípio do Estado laico.
A fé não precisa de uma igreja para se manifestar. As igrejas, como os partidos, são sobre poder. No Ocidente medieval, a Igreja Católica exercia um poder absoluto sobre as sociedades: o papado legitimava os reis. Um paralelo apropriado é com os totalitarismos do século 20: os partidos de Stalin e Hitler identificavam-se com o Estado.
Nas democracias, contudo, partidos e igrejas ocupam lugares radicalmente diferentes. Os primeiros almejam governar; as segundas só podem almejar a liberdade de pregar uma fé.
O partido é a expressão política de uma parte da sociedade que pretende representar, provisoriamente, a sociedade inteira. A meta é atingida por meio do voto majoritário, veículo da soberania popular, que sagra a verdade do partido como verdade geral provisória.
Mas o partido que chega ao governo continua a ser a parte, não o todo, e, por isso, corre o risco de ser apeado na eleição seguinte. A igreja, porém, qualquer que seja ela, define a sua verdade como Verdade eterna —e, por isso, não tem o direito de querer governar.
Os partidos exibem seus programas como soluções melhores para administrar as coisas (a economia, os serviços públicos) nas circunstâncias do presente. As igrejas, por outro lado, pretendem universalizar uma fé, um modo de entender a vida e a morte, um catálogo de preceitos sobre o comportamento dos indivíduos nas esferas pública e privada.
O governo do partido pode ser mudado; o “governo da igreja” é, por definição, imutável. Do ponto de vista da democracia, não existem diferenças essenciais entre Damares e os fundamentalistas islâmicos que governam a Arábia Saudita, o Irã, o Sudão e a Faixa de Gaza.
“Todo o poder aos sovietes!”. A exigência dos antigos comunistas de transferência de “todo o poder” à classe proletária deve ser interpretada: de fato, eles queriam o poder absoluto para seu próprio partido.
Os partidos comunistas proclamavam representar, com exclusividade, a classe trabalhadora. Por esse motivo, quando os bolcheviques chegaram ao poder na Rússia, começaram proibindo os “partidos burgueses”, inimigos da “ditadura do proletariado”, para proibir na sequência os demais partidos que juravam representar os interesses dos trabalhadores.
As igrejas são, sob esse aspecto, muito parecidas com os partidos comunistas. Deriva daí que a elevação de uma igreja ao governo é o que de mais perigoso pode acontecer para a liberdade de religião.
A seita de Damares vê, no cristianismo, a fé verdadeira exclusiva. O seu “governo da igreja” começaria proscrevendo as “religiões demoníacas” (ou seja, todas as não cristãs), mas não pararia por aí.
Tanto quanto as outras, a seita de Damares enxerga a si mesma como a única perfeita tradução da fé cristã. Depois de eliminar as “religiões demoníacas”, seu “governo da igreja” proscreveria as igrejas cristãs concorrentes. Todo o poder para Damares tem, como implicação lógica, a guerra de religião, primeiro contra os “infiéis” e, na sequência, contra os “falsos fiéis”.
No seu organograma de governo, Bolsonaro traçou um círculo em torno de quatro ministérios, criando uma reserva de mercado para o extremismo de direita.
Perto dos ministérios das Relações Exteriores, da Educação e do Meio Ambiente, a pasta de Damares parece um pátio de folguedos infantis entregue a meia dúzia de fundamentalistas cristãos. Engano: o governo que desafia o Estado laico está brincando com fósforo entre tambores de substâncias inflamáveis.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.