Imerso em sua arrogância, ministro diz que protegerá os cidadãos
Luiz Fux é um homem de muitos princípios — tantos, que seleciona o mais conveniente para cada circunstância. O juiz chegou ao STF quando sugeriu a José Dirceu que absolveria os réus do mensalão (“eu mato no peito”).
Já ministro, entre a lei e a palavra empenhada, optou pela primeira, condenando-os. Mais tarde, empurrou a lei para um bueiro e escolheu o corporativismo, estendendo o auxílio moradia a toda a magistratura. Agora, tritura a Constituição para reinstalar a censura prévia, proibindo a realização e a publicação de entrevistas com o presidiário Lula.
No seu despacho, o principista invoca os limites legais à propaganda eleitoral para justificar seu veto ao trabalho jornalístico, confundindo deliberadamente assuntos desconexos. Ele sabe que viola a lei. Mas o faz porque quer e pode, operando no terreno da desinstitucionalização do país e da anarquia judiciária.
A confirmação da liminar fuxiana pelo presidente da corte, Dias Toffoli, acelera a “autofagia” do Supremo (apud ministro Marco Aurélio). Mas, sobretudo, sedimenta um precedente: de direito dos cidadãos, a liberdade de imprensa fica rebaixada à concessão de uma reinventada “Divisão de Censura Federal”, que passa a funcionar clandestinamente no gabinete dos ministros do STF.
O episódio guarda um segredo. O pedido de liminar oriundo do Partido Novo — uma igrejinha de auto-intitulados liberais sempre prontos a apelar pelo veto de candidaturas e pela censura à imprensa — foi encaminhado ao presidente do STF, que estava no país, mas desviou-se misteriosamente até o colo de Fux. A decisão do Censor, derrubada por Lewandowski, acabou reimposta por um Toffoli ressurgido da noite escura. A triangulação entre o partido e dois ministros que fazem tabelinha tem os contornos clássicos de uma ação entre amigos. A exposição do segredo é, porém, menos relevante que o exame das bases filosóficas da restaurada censura prévia.
Num artigo recente, publicado pela Revista de Jornalismo ESPM, Eugênio Bucci e Carlos Eduardo Lins da Silva identificaram a emergência do “jusbonapartismo” — o poder bonapartista de um Judiciário que se ergue acima da lei. Eis a chave para decifrar o ato de censura prévia. Fux argumenta que a “relativização excepcional da liberdade de imprensa” (isto é, a censura prévia) destina-se a evitar a “desinformação do eleitor”, a “confusão do eleitorado”.
É direito criativo em estado puro: a fabricação expressa de uma Constituição alternativa. Imerso no lago de sua arrogância, o Censor declara que protegerá os cidadãos de si mesmos. A nação, formada por crianças, será tutelada por um ente de consciência paternal, que é ele mesmo.
Desde o mensalão, o PT clama aos céus pela implantação do “controle social da mídia”. No núcleo do conceito petista, encontra-se a noção de que uma representação da “sociedade” deve exercer a prerrogativa de censura, a fim de presevar os cidadãos indefesos de ideias venenosas propagadas pela “mídia”. Ironicamente, é Fux, esse militante improvável, quem realiza o sonho do partido. Só que no lugar de “conferências” “conselhos” ou “comitês populares” gerados pelo governo (isto é, de fato, pelo Partido), o ministro atribui ao STF o papel de Poder Tutelar.
Num tuíte de agosto, Trump referiu-se do seguinte modo aos jornalistas: “De propósito, eles causam grande divisão e desconfiança. Eles também podem provocar guerra! Eles são muito perigosos e doentes!”. O arco do “controle social da mídia” abrange correntes ultranacionalistas de direita nos EUA e na Europa e regimes autoritários de esquerda, como os de Cuba e da Venezuela. No Brasil, funciona como ponto de encontro do lulismo (“mídia golpista”) com o bolsonarismo (“mídia vermelha”). Fux, o Censor, não proíbe a entrevista de Lula por divergir do lulismo, mas por concordar doutrinariamente com ele.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.